VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Entre risos e ruínas: uma semana de teatro em Campo Grande

Nada como ter constatado, ao fim da semana em que se comemora o Dia Internacional do Teatro (dia 26 de março), que Campo Grande e Mato Grosso do Sul têm plenas condições de comemorar e honrar essa data. Foi o que demonstraram o Festival Boca de Cena, composto por nove espetáculos, e as duas montagens de textos de Plínio Marcos – o inédito O bote da loba e o consagrado Navalha na carne –, ambas no fim de semana retrasado, com a primeira reprisando no seguinte.
Oito dias de surto teatral, que infelizmente não pude acompanhar e vivenciar integralmente; do Boca de Cena, mesmo, assisti menos de 50% dos espetáculos: não teria direito sequer a certificado. Mesmo assim tentarei não só falar dessa semana especial como refletir brevemente sobre as condições atuais do teatro em Campo Grande a partir dela.
Sobre O bote da loba já escrevi esse outro post, mas aqui é um bom lugar para esclarecer algumas coisas a partir de informações que obtive junto ao grupo Mercado Cênico. Primeiro, quanto à origem do texto: trata-se de um trabalho de 1997, o último de Plínio Marcos, que pretendia escrever uma segunda parte mas abandonou a ideia. Daí certo ar de inconclusão, ou melhor, de fecho em aberto, que no fim das contas agradou ao dramaturgo.
Segundo, quanto à obtenção do texto, que se deu via contato de Carin Loro, atriz e estudiosa da obra de Plínio, com sua família. Uma verdadeira honra, como ela mesma definiu. E terceiro quanto à magnífica cena da dança, que de fato, como intuiu um amigo, é um acréscimo do grupo. E como elogiei a cena em meu texto, nada mais justo cumprimentar o grupo por ela.
Boca de Cena
Passemos, então, d’O bota da loba ao Boca de Cena. O primeiro espetáculo que vi no festival foi uma montagem de O santo e a porca, de Suassuna, pelo grupo Fulano di Tal. Várias coisas chamam a atenção nessa montagem. Em primeiro lugar sua indiscutível qualidade técnica, que no entanto reforça certas fórmulas de encenação e interpretação. Trata-se, afinal, de uma transposição do teatro popular de Suassuna para o palco italiano no contexto da nossa sociedade midiática, e é quase inevitável que o “padrão Globo” das adaptações do dramaturgo se reflita nessa proposta. A vantagem inegável é o grau de comunicação com o público.
Em segundo lugar há a questão da adaptação do texto de Suassuna. Embora, talvez, um pouco excessivos, os acréscimos humorísticos e modernizantes raramente chegam a ferir o espírito do original. Os maiores problemas, parece-me, derivam da redução deste. A dicotomia santo/porca, por exemplo, importantíssima no texto e na construção de Euricão, praticamente desapareceu na montagem. Talvez em função disso, o fim da peça foi praticamente reescrito. Quando Euricão ameaça quebrar o santo (perdoem o spoiler), aí sim é difícil reconhecer o espírito de Suassuna, tão zeloso da religiosidade popular e seus ícones. Ao mesmo tempo, o paroxismo que toma o personagem é sem dúvida um elemento dramático interessante. Além disso, em compensação, sua nova fala final inverte esse paroxismo numa tocante aceitação das “lições” do santo – o que é coerente, justamente, em função do paroxismo anterior –, enquanto o texto de Suassuna se conclui de forma aberta.
Enfim, entre perdas e ganhos, a montagem da Cia. Fulano di Tal dá uma demonstração de qualidade técnica e profissionalismo que são fundamentais na cena teatral de uma capital como Campo Grande.
Quem matou o morto?, o espetáculo seguinte a que assisti no festival, é um texto de um autor local, Breno Moroni. Trata-se, basicamente, de uma comédia circense com elementos de denúncia política, já que o morto em questão é um general da ditadura militar, cuja caveira é muito bem representada pelo crânio de uma espécie de monstro. Em contrapartida à covardia desse período tenebroso, a Cia. de Teatro e Circo M'Boitatá deu por si mesmo uma demonstração do heroísmo do teatro na figura da única atriz em cena, que não deu uma demonstração sequer das condições adversas (que não vou mencionar aqui) sob as quais atuou.  O trio, aliás, foi praticamente impecável, tanto nos diálogos quanto nas estrepolias circenses.
Só o título me pareceu um pouco fortuito. É verdade que a “resposta” (com muitas aspas) à questão que ele coloca se coaduna com o humor surreal do texto, mas a interrogação talvez pudesse ser inserida de forma mais orgânica ou explorada de forma mais criativa no interior da peça. Em todo caso, é sem dúvida um trabalho digno de Moroni, nome dos mais importantes na cena local, de quem eu já havia visto o belíssimo Os corcundas e de quem, dois dias depois, ainda vi o excelente Godgle. Mas isso merece um item à parte.
Godgle e a recriação terminal
A ideia, ou melhor, a “sacada” de Godgle é simples: reencenar a criação do mundo como instauração simultânea das mazelas e catástrofes produzidas pela humanidade ao longo da História. O Google, nesse sentido, é um mote para esse olhar retrospectivo, ao mesmo tempo que emerge como ícone máximo de um tempo em que essa acumulação ruinosa, não obstante mais visível do que nunca, se articula cada vez mais à alienação e à esquizofrenia social.
Também aqui a dramaturgia une o sério e o circense, mas agora numa espécie de equilíbrio tenso. A inspiração explícita em Esperando Godot é apenas um ponto de partida, já que Bob 1 e Bob 2 se desdobram em ações que Gogo e Didi nem sonham em executar; além disso, enquanto Godot é uma presença-ausência enigmática, que se manifesta na forma pueril de um jovem mensageiro, Godgle é uma presença-ausência, digamos, muito mais pragmática, cobrando tributos em espécie ou cartão e inspirando cultos descabelados que dão uma mostra do estado atual da religiosidade.
Mas a crítica de Godgle não se dirige apenas às religiões ou mesmo às sociedades modernas. Seu alcance é antropológico, ou melhor, psico-antropológico: por exemplo, na demonstração de que juntamente com a propriedade privada nasce o fetiche pelo outro; e sobretudo na encenação de uma criação do mundo na qual o elemento feminino está ausente, e que reflete as condições deste nosso velho e podre mundo patriarcal.
É curioso, nesse sentido, o contraste de Godgle com O bote da loba, onde, inversamente, apenas duas mulheres ocupam o palco, e onde, ao contrário do texto de Breno Moroni, produz-se um tipo de conciliação. Para além das questões de cunho sexual, penso que esse contraste se alia à centralidade demandada pelo feminino – não “pelas mulheres” – hoje, quem sabe como uma etapa para a construção de um equilíbrio mais efetivo dos seres e entre eles.
No mais, se for preciso criticar algum aspecto da peça, eu diria apenas que ela podia ser mais curta. Alguns espisódios me pareceram desnecessários e repetitivos, sobretudo no que tange à própria religião. É verdade que o efeito de vertigem causado pelo acúmulo de “absurdos” alegóricos é importante, mas por vezes a sutileza de uma crítica bem articulada ao humor, capaz de ecoar por muito tempo na consciencia ou mesmo no subsconsciente do espectador, se dilui a seguir numa crítica mais ostensiva. É claro que seria preciso dar exemplos específicos, e talvez eu possa fazer isso quando assistir a filmagem da peça. Por enquanto, fico devendo.
A cena e as demandas
Mas posso, nesse ponto, tentar elaborar minhas considerações gerais sobre a situação do teatro em Campo Grande, ou, talvez mais propriamente, da relação desse teatro com o público (de cuja perspectiva, na verdade, parte minha própria avaliação). Os termos da questão já foram colocados: a oscilação, dialética ou como quer que se concebam as relações entre a intenção séria e a intenção humorística, presente em todas as peças citadas; inclusive O bote da loba, que arrancou risos da plateia antes que o pudor (da própria plateia) falasse mais alto. E também, é claro, em O santo e a porca, onde o humor ganhou mais espaço que no original, por conta de inserções nas falas e na rubrica.
Breno Moroni
Mas é nas peças do próprio Moroni que a questão se coloca de forma mais interessante, já que se trata de obter equilíbrios – e tensões – mais delicados. Em Quem matou o morto?, a denúncia política intervém de forma quase pontual, mas com virulência suficiente para marcar a peça como um todo. Tanto que, à saída do espetáculo, várias rodas de conversa discutiam a questão da ditadura militar. Em Godgle, no entanto, a dialética de tensão e equilíbrio é mais difícil, e talvez reflita com mais propriedade a situação geral que tenho em mente.
Em vários momentos da peça foi possível notar manifestações de riso excessivas ou ligeiramente deslocadas na plateia. O que é natural num público diversificado – incluindo adolescentes e mesmo crianças – como, felizmente, foi o do festival; além disso, pelo menos uma vez um dos atores, Anderson Lima, afrontou diretamente a situação, voltando-se para o público e debochando de seu riso por meio de um riso “sem graça”. Esse gesto, que eu supunha programado no texto, foi um improviso do ator, como ele mesmo me revelou. E é exatamente essa situação referente à relação com o público que eu penso que deve ser encarada frontal e programaticamente pelos realizadores de teatro em Campo Grande.
Trata-se, em suma, de uma pequena – e riquíssima – encruzilhada. No estado atual de sua relação com o público, que é basicamente um público em formação, esses realizadores têm a chance de decidir entre fazer um teatro sério (em sentido amplo), eventualmente de vanguarda, ou um teatro popular. Ou, melhor ainda, de explorar conjuntamente essas possibilidades, com pesos diferentes mas levando em conta todos os elementos em jogo. Ou seja, de fazer um teatro sério que leve em conta e pense criticamente as demandas do público, incluindo aí a questão do humor.
Este, aliás, é um bom ponto para inserir um comentário sobre a montagem de Navalha da carne pelo Circo do Mato, que, como o nome indica, é ou era uma trupe circense (a mesma, aliás, que montou o já referido Os corcundas). Pois o texto visceral de Plínio foi a primeira montagem inteiramente séria do grupo. Assisti-a duas vezes, e, em que pese o desafio de personagens dificílimos, fiquei muito impactado pelo desempenho dos atores. E note-se que entre esses personagens há um, a travesti Violante, com uma forte potencial caricaturesco, que o ator Mauro Guimarães soube evitar, compondo uma figura tipificada mas nem por isso menos densa e dramática. O Circo do Mato encarou um desafio – um salto do circense para o dramático – e o venceu.
Não estou sugerindo que o humor seja inferior ao drama: Aristófanes, Shakespeare, Moliere ou mesmo Beckett e Ionesco morreriam de rir (ou me matariam a punhaladas) se eu pensasse isso. Aliás, 16 de março é não só o Dia do Teatro como o Dia do Circo, também festejado pelo Boca de Cena.
Estou me referindo, apenas, à situação da cena atual de Campo Grande e às demandas relativas ao tipo de público e de teatro ela quer construir. Aliás, aos tipos de público e teatro, pois a pluralidade é tão importante quanto a unidade – ou melhor, a união, e isso esses oito dias de surto teatral demonstraram que existe e pode se fortalecer ainda mais no Estado. Entretanto, quanto mais isso se der numa dialética viva e crítica (ou seja, não meramente comercial) com o público mais amplo possível, é óbvio que todos só têm a ganhar. A perder, só os grilhões.Merda!

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