VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Os garotos ainda estão aí
(uma bravo'venon'dead'fishopéia)

















Este post começa com um agradecimento: ao Du Gezzu, onde eu comprei, com meu amigo e irmão Sebastião Ricardo, os ingressos para o show do Dead Fish (e muito mais) terça-feira passada. O Du Gezzu é um empresário que tem uma loja com esse nome (que eu não sei se é mais dele ou da loja) no centro de Campo Grande, onde vende camisetas e adereços de rock. À noite, quando a loja fecha, ele deixa o som ligado, com uma chama artificial bruxuleante, emitindo vibrações distorcidas para os incautos passantes da Rui Barbosa, quase ao lado do ponto onde eu tenho o privilégio (acreditem, é um privilégio) de pegar ônibus.

Pois foi a insistência em pegar o ônibus ali que me fez lembrar do show do Fish. Entre decisões e desdecisões, além do desânimo de chegar ao mercado mais próximo pra comprar o "alimento não perecível" que dava direito ao desconto, eu e o Tião decidimos ir. Quando entreguei a sacola ao Du Gezzo, disse brincando que era pena ter que comer o peixe sem arroz, mas acho que ele não entendeu, e me censurou com o ar mais cândido do mundo: "Ah, não... o arroz é pros velhinhos!".

E lá fui eu pra casa, pra depois sair de casa, e voltar pra pegar o ingresso, e depois perder o ingresso, achar o ingresso, ir pegar o ônibus, perder o ônibus e todos os outros ônibus, e ir a pé do Coophasul para o República, descidona brava. Andar a pé é outro privilégio que eu tenho, mas não é todo dia, digo, toda noite que eu faço isso à meia-noite. O que é um erro, porque o ar fresco e a própria imensidão da noite, que até o esbanjamento de eletricidade da Big Field torna mais bonita, convidam os bons pensamentos. Pra lá do meio do caminho, eu pensava que dessa vez precisava amar esta cidade, e disse em voz alta (nem tanto, pra não assustar algum mendigo, cachorro ou espírito): "Campo Grande, eu te amo". Era uma noite especial, mesmo.

Bravo
E o Tião lá no República, de cara comigo, mas, enfim, curtindo o Bravo, que rolava depois do Dor de Ouvido, que eu tinha perdido, provavelmente pra salvação da minha própria dor de ouvido. Não que os caras não sejam bons, pelo contrário, talvez façam o melhor - e mais violento - punk-trash de Campão. O Bravo, no palco, me soava  um pouco exato demais, e eu fiquei de longe, falando pro Tião sobre o ar classe-média da garotada, com suas roupas de marca e em suas rodinhas impenetráveis, daquelas que eu invejava quando adolescente, até ouvir e perceber o nível das conversas. Os caras lá na frente, e ainda o telão com o dvd do ao vivo do Dead  Fish, onde eu via sintomas protofascistas, de alguma forma pareciam me traduzir isso.

Mas eu sabia que nessa noite eu estava destinado a pôr à prova esses preconceitos ou, em todo caso, conceitos mal formados. E foi só me aproximar do palco e constatar a entrega dos rapazes pra sentir que a energia, ali, estava muito além de qualquer vigilância crítica. O que não significa isenta de crítica: mas quando o instinto reconhece que a coisa é boa a vigilância precisa se suspender pra deixar que ele exerça seus direitos. A crítica fica pra depois.

Falo instinto (e não, sei lá, "percepção estética") porque, como sempre acontece com as bandas de Campo Grande, foi a bateria que me pegou primeiro. Campão (Big Field é outra coisa) possui, em minha humilde e desqualificada opinião, os melhores bateristas do Brasil, incluindo o melhor deles, Jean Albernaz, que eu vi em ação implacável duas míseras vezes no falecido Dimitri Pellz, e que hoje integra a igualmente Dead Cow. O da outra Dead, a Venon, é, salvo engano, o Rodrigo Neves, um garoto com cara de nerd e alma de guerreiro. Foi nele que eu vi a alma de toda a banda e todo o lugar - a melhor alma que ali exalava: a warrior soul dessa warrior generation, que é também a senha desse computador do Lucas, meu sobrinho, que eu estou usando agora.

O que antes me parecia "exato demais" agora eu via que era exato e visceral, pois, muito mais que performance ou exibição técnica, havia ali entrega e beleza, com um sentimento expansivo que eu devo estranhar porque é um bocado mais otimista que o do rock - mais ainda o hardcore - dos anos oitenta. Achei impressionante como a precisão rítmica se alia ao uso abusivo dos pratos, um deles com vários furos, criando um efeito de propagação que transcende o ritmo mas não o contradiz. Nas três bandas isso acontece, mas em nenhuma, tive a impressão, com a fluidez da Bravo. Nas três bandas, também, as letras invocadas, com virtuosisismo e os arranjos trabalhados das guitarras, aliando a fúria punk com uma insistência melódica mais derivada do metal.

Venon Dead
E a atitude provocativa dos vocalistas, olhando nos olhos da platéia e, às vezes, usando o microfone como instrumento discursivo. "É tudo planejado", canta com razão o Renan Reggiani da Bravo. "Nós precisamos deles. Eles precisam de nós", discursa  o Rodrigo do Dead Fish, resumindo com isso a autoconfiança talvez excessiva, mas necessária, dos rebeldes dessa geração, se é que eu posso englobar numa só geração uma banda dos anos 90 e outras duas mais recentes. Mas acho que sim, pelo menos no sentido de que são bandas que precisam lutar contra dois fantasmas: o decreto da morte do rock, reiterado desde a explosão fabricada do neosertanejo, que foi uma forma de impor limites a uma geração (a dos anos 80) que começava a se afirmar como muito mais que um modismo; e também o fantasma da mídia, das câmeras que de tão onipresentes invadiram o inconsciente, e cerceiam tudo como tentação e imposição de padrões gestuais, visuais etc.

Tanto que quando alguém, brincando, chamou Rodrigo de "poser", não disse uma mentira absurda. Mas a Dead Fish não seria uma grande banda contemporânea se não assumisse de alguma forma sua condição, periférica que seja, no interior do monstro SIST. Rodrigo é herdeiro de Renato Russo e Raul Seixas, mas parece decidido a não se deixar devorar. Daí os dead fishes se darem o direito de serem posers sem abrir mão de serem alternativos. Quem quiser que faça a crítica, eu só deixo essa impressão, e essa confissão: quando encontrei Rodrigo, agradeci-o por exisitir.

Como agradeci, em típica comoção paternal, vários jovens ali: por existirem e serem quem são; por resisitirem. Por pogarem, alegres e enfurecidos, às vezes um pouco enfurecidos demais, talvez não tão conscientes quanto eu gostaria que fossem... Mas pode haver atitude mais torpe que a dos velhos que censuram a insuficiência do heroísmo que eles próprios não tiveram? Um rapaz com um brilho nietzscheano nos olhos, um Sapoeta perambulando ares pessoanos, um sujeito mais magro que eu insistindo em pogar no meio de montanhas como o José Bráulio, meu aluno, que felizmente preferiu usar os músculos do cérebro a ser pugulista. O pogo, às vezes, ameaçava desandar para a violência, mas a energia do som era sempre mais forte. Um detalhe: o guitarrista do Dead Fish, fera como ele só, usava uma camiseta do Venon Dead. Não vi mais ninguém, ali, prestigiando na pele as bandas locais.

"Veja, os garotos ainda estão aqui, gritando por mudança". Tive a impressão de que a referência, a anterioridade desse "ainda" é o "movimento dos caras-pintadas", marco na geração do Dead Fish. Até hoje se discute o quanto o Fora Collor foi um "movimento" espontâneo ou planejado pela mídia. Eu, que, como se diz, "vivi aquele momento", aqui mesmo em Campão, sei perfeitamente que planejamentos não faltaram nele, mas esses planejamentos envolveram não só a Rede Globo como o movimento estudantil e os partidos de esquerda.

Dead Fish
O discurso de Rodrigo, que às vezes parece extremamente partidário, mas que também insiste em reivindicar uma união para além de qualquer segmentarismo ou partidarismo (estou usando palavras dele mesmo), mostra que essa tensão está viva, e com ela a demanda de ir além do monstro voraz que se tornou o sistema político-econômico mundial e, claro, brasileiro. Com tanta água podre por aí, só mesmo sendo Dead Fisch pra nadar contra a correnteza. Ou Dead Venon, ou Bravo: viver bravo, falar bravo, ter dor de ouvido. Na hora certa, é claro.

Fim de festa, o Tião já tinha sumido. Subi a cachoeira, digo,a ladeira com o sangue mais vivo nas veias, mais feliz com Campão e quase invulnerável, não fisicamente, mas espiritualmente, às pequenas grandes misérias de Big Field.

Falando nisso, eu termino esse post com outra homenagem: ao bar Holandês Voador, que devia apresentar nesse domingo o terceiro Bolha Festival mas foi impedido pelos poderes instituídos do Cüartele Generale. Toda solidariedade aos bons piratas!

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