VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Holandês Voador, 21/12/2012: acabar não acabou, mas bem que começou...


Alguém já notou como os numerais do título aí em cima podem ser lidos como um, digamos, anagrama numérico para o famigerado 666?... 2+1, 1+2, 1+2, cada um vezes 2? (Principalmente se você inverte: 2012/12/21; afinal, o zero é um tipo de multiplicador, não é?) Eu só notei agora, e confesso que fiquei meio incomodado... Não deveria, porque anteontem, em algum momento lá no Holandês Voador, se não me engano no showzaço do Strangers, eu ordenei o despejo de todos os meus demônios... Mas quem disse que esses despejos se cumprem assim, de uma vez?... Quem disse que as coisas acabam de uma vez?
Mas que 21 de dezembro de 2012 (atenuemos o monstro) foi uma data especial, foi com certeza. Tenho dessas certezas quando “tudo” (tempo, ônibus, condições físicas) conspira para que eu não vá a algum lugar, mas uma força maior ainda, e que também não é exatamente a vontade própria (porque eu estava cansado pra’ca, e achava que o “rolê” já estava quase no final quando saí de casa), acaba me levando. Foi assim no show H.C. que vi no finado República, do qual falo nesse outro post (onde, aliás, termino mencionando o Holandês), foi assim agora, no “fim do mundo no Holândes Voador”.
Minha obsessão era ver O Lixo e a Fúria, a banda do George, o “cara do bar”, e da grana, e dos cigarros soltos, e que é, ao lado do Enrique “DxDxOx  & Jäpüräh Nöise” Gonçalves de Souza, o detonador cultural mais importante do rock bigfieldense (pelo menos dos que eu conheço), e, como ele, compositor e vocalista de uma das bandas mais importantes daqui (duas, no caso do Enrique). Explico a obsessão: vi um ensaio aberto d’ O Lixo na única vez em que entrei no antigo Holandês, que era um muquifo muito mais punk (trash, na verdade) e um pouco menos longe de casa, mas em que nunca calhou de eu ir em dia de festa.
Mas, enfim, ali mesmo, pelo pouco que vi, fiquei fã do George e sua trupe, vidrado na energia visceral e vitalíssima, de par com um tipo de conceitualismo ou experimentalismo que eu só pude entrever, pelo pouco que entendia das letras e pelo tipo de variação musical e vocal de uma canção pra outra, às vezes na mesma canção. 
Pois é, a despeito do nome que, digamos, suja um pouco mais a frase de Hamlet, as canções d’O Lixo e a Fúria são de um tipo que se pode chamar assim, sem problemas. A banda de George faz algo que eu não chamaria de punk rock (nem, como em outros casos, punk pop), mas um punk’n’roll. “Vamos tocar um pouco de rock’n’roll”, anunciou Jorge; e antes daquele ensaio, quando eu perguntei se a banda era punk, ele completou: “É, punk e mais um monte de coisas”. Por aí.
Se é pra tentar uma descrição, eu diria que O Lixo e a Fúria é constituído por uma batera e um baixão cada vez mais ferozes, uma guitarra fantástica, de timbre ao mesmo tempo altissonante e rascante (como nos melhores Pages e Towshends), e a grande voz-presença de George, verdadeiro monstro, hero, sensual ou hedonista que seja, mas autêntico no brilho dos olhos, nos gestos raivosos ou “insanos”, no pezão descalço querendo detonar o palco de seu próprio “estabelecimento comercial”...
O fato é que O Lixo e a Fúria transpira, aliás, vomita energia e “atitude”: raiva, ironia e, acima disso tudo, rebeldia e inteligência. Recusa da vida-em-merda e paixão pela vida, pelo som, pelo rock, pela hora sagrada que é esse vomitório. Só vi outra banda unir tudo isso com tanta força e intensidade: a Dimitri Pellz encabeçado por Maíra Espíndola, vocalista com a qual, aliás, eu tive a petulância de comparar o George, sem que ele ficasse chateado para além da obrigação de admitir a inferioridade nos dotes físicos... 
(Mas a Dimitri tem outro acabamento, meio progressivo, que, apesar da monstruosidade baterística que é Jean Albernaz, vai um pouco menos na veia, e o polemismo verbal da Maíra é tão admirável quanto, às vezes, sacal... Mas tudo bem, o de Renato Russo também era, e nem por isso era menos fundamental. Tudo isso entre parênteses porque comparações são sempre nocivas... produtos, embora talvez ainda necessários, desse mundo que morre.)
Mas O Lixo não foi o único acontecimento dessa noite, e de outras que já presenciei no Holandês, e sobre as quais não escrevi de pura preguiça (e descrença nesse blog fuleiro). Pudera ter conhecimento musical ou pelo menos vocabulário técnico pra dar uma ideia dessas experiências sonoras, mas não posso registrar mais do que impressionismos. Como isso depende da (fraca) memória, restrinjo-me a anteontem.
Da primeira banda (depois acrescento uma ficha técnica nos comentários), que eu já peguei no final, só me ficou a imagem de um batera que me lembrou, no tamanho e (talvez por isso) no estilo, o Pete Davis do grande U.K. Subs, além da impressão de um bom punk rock; assim como de outra (a quarta?), que tocou ótimos covers dos Ramones, Mistifs (que não conheço) e punks nacionais oitentistas; e uma outra, ainda, de sonoridade mais burilada, um batera monstruoso, à la Dave Grohl, e energia mais positiva; e uma garota (mãe de uma Júlia que, obrigatoriamente, me fez lembrar outra) que em algum momento assumiu uma guitarra e o vocal pra berrar “repúdio!”; e, antes disso, um trash (grind, segundo o Artur, o rei-batera do Japuräh) agressivo mas também burilado por uma batera feroz e um baixão idem e solante, a cargo de um tal Goliardo (segundo o próprio, um nome de origem anarquista); e, em outro ápice que antecedeu o d’O Lixo, a Strangers, com outro vocalista carismático e de ar iluminado e um instrumental firme, coeso e poderoso, tocando covers de obras-primas do metal e belas canções próprias. 
Falei em “ápice” mas realmente não quero fazer comparações. Em alguns estilos o perfeccionismo técnico é quase obrigatório, em outros o mais importante é obter um entrosamento que permita engrenar a energia mais visceral possível. E cada coisa diz mais à ideia e ao sentimento de cada um. Admirável, aliás, a despreocupação com que Jorge deixou que um cara talvez meio deslocado ali (mas responsável por um verdadeiro show de break no meio do pogo) também se apoderasse do microfone pra cantar coisas que, bem ou mal, incomodaram muita gente. 
Em certo sentido, portanto, a apresentação mais punk da noite, e de um dos poucos, ali dentro, que talvez tenha alguma coisa a ver com “Garoto do subúrbio” (dos Inocentes, que uma das bandas punks tocou). O único que teve coragem de tirar a camisa, e o de olhar mais raivoso, afora quando tirava as garotas pra dançar.
“O começo do fim do mundo”, todos sabem ou deveriam saber, é o nome de um evento e um disco punk memoráveis, ocorridos nos idos dos anos oitenta... Nesse 21/12, tenho certeza, o mundo começou a acabar um pouco mais. No dia seguinte (ou melhor, no 23 já em curso), foi ou seria noite de Lobisomens, mas eu mesmo estava mais morto que vivo, e agora eu só posso imaginar o que seja o punk-samba-jazz que me descreveram. Pena, mas, para o bem e para o mal, as aberrações andam pululando nesse campo velho de guerra... 

Sim, lixo e fúria. E vice-versa.
Bônus tracks:
"Garoto do subúrbio", na primeira versão dos Inocentes
(Dedicada ao cara em destaque aí em cima, ao José “Flip” lá na Moreninha e, descontado o “garoto”, a mim mesmo aqui na Coophasul.)
Esta é especialmente pro George: 
Ira, "O bom e velho rock’n’roll"
Nota póstuma: a propósito da palavra “atitude” (que eu também ouvi naquela noite, salvo engano do baixista d’O Lixo, ou do meu amigo José “Flip”), um grande professor, Antonio Arnoni Prado, certa vez a depreciou lembrando uma (esta sim) famigerada propaganda do Danup... Se pudesse, hoje eu responderia o que pensei em responder naquela hora: Arnoni, foda-se o Danup! Seria uma bela atitude, hehe.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Adeus a um amigo que não cheguei a ter



A Unidade de Campo Grande da UEMS está de luto pela morte, na última sexta-feira, 09/11 (mas confirmada apenas ontem), de Silvio Sandro Soares, acadêmico do curso de Letras. Silvio participava de um encontro científico em Alto Araguaia, Mato Grosso, e, durante um passeio com colegas, não resisitu ao fascínio das águas turbulentas em cujas margens se divertia e entrou nelas para não voltar a emergir com vida.

Os pais de Silvio, fortes o quanto puderam em sua dor, acreditam que a morte antecede um renascimento. Embora de forma um pouco diferente, creio em algo semelhante, e é o que me sugere a imagem de um pôr-do-sol - em águas mais calmas do mesmo Rio Araguaia - para ilustrar este texto.

Mas achei bonito o fato de, entre as fotos com as quais compuseram um mural exposto no velório, hoje de manhã, os pais de Silvio terem incluído uma fotografia tirada justamente no dia e local da tragédia, e na qual, ao lado dos colegas, ele ostentava um sorriso que traduzia seu estado de espírito. E tem razão, o Sr. Paulo, quando diz que seu filho se foi de uma forma digna, entre amigos, em uma viagem de estudos (apresentara dois trabalhos, salvo engano, no dia anterior) e vivendo a vida que, certamente, ele amava muito.

Foi um amigo que não cheguei a ter. Não o tive como aluno e não me lembro, sequer, de tê-lo visto no corredor da UEMS. Mas quando penso nele, em sua perda, e também nas amizades que tento cultivar entre os estudantes, cada um deles (como cada um de nós) com seus erros e acertos, suas coerências e contradições, só posso desejar que o respeito pela dignidade do ser humano nunca deixe de estar em primeiro lugar nas relações - educacionais, profissionais etc., mas antes de tudo humanas - que vicejam entre nós, na UEMS e em qualquer parte.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Serra, serra, serra o Serra...

Só pra não perder a chance (e não deixar esse blog morrer)...


(Aqui em Campo Grande-MS também há motivos de sobra pra comemorar a derrota esmagadora do Giroto; mas o Bernal é uma incógnita, enquanto o Haddad é uma liderança que desponta, com chances de ajudar a transformar essa Terra em Brasas num país de verdade...)

domingo, 16 de setembro de 2012

"Prata da casa"? Fabio Brum is Gold Holly, Bigfield!!!

O site Midiamax é um dos poucos informativos mais ou menos imparciais deste Estado de Coisas, mas eu vou pedir licença pra começar esta crônica xingando o jornalista ou quem quer que seja que noticiou o show de Fabio Brum & Renato "Bêbados" + João "Bohan" Bosco e João Carlos como um show "prata da casa": mano, disponha de seus dedos, faça uso deles num ralador e só pare quando se convencer da ignomínia que escreveste!

Consagrada que seja, a expressão "prata da casa" é uma ofensa nesse caso, como em tantos outros... É a mesma história de que "santo de casa não faz milagre": se o que esses caras fizeram ontem no Fly não foi uma sequência magnífica de milagres, eu não sei o que foi!

E Fabio Brum não é "prata da casa" coisa nenhuma: é ouro lavrado, "ouro nativo que na ganga impura a bruta mina dos cascalhos vela", como certamente diria o Bilac. Gold Holly, se me permitem, em homenagem à versão de Buddy Holly que foi um dos melhores momentos da noite, com guitarradas sublimes que com certeza chegaram ao céu, ao inferno ou aonde quer que esteja o velho Bode.

Dito isto, esclareço que acompanho - mal e porcamente, até porque morei fora muito tempo - os Bêbados e, antes deles, a Blues Band desde os anos 90, desde os tempos do Sucão, quando quem os empresariava era o velho Gil, e eles tocavam no chão, no centro de um inferninho iluminado, Fabio solando endemoniadamente, o Renato em plena potência roufenha, a fumaça pairando no ar e o povo dançando em volta, tomado... Acho que esses shows foram minhas primeiras experiências da música como algo definitivamente transcendental.

O que eu eu vi essa noite não foram essas cenas reprisadas, mas esse espírito ressuscitado, e, no caso do maior guitar hero bigfieldense, ainda acrescido da experiência que não domou, mas se somou ao virtuosismo feroz que já corria no sangue. Fabio não é o tipo de guitarrista que se contenta em fazer "um som perfeito", mas que não hesita em se arriscar pra se transcender, sem se importar se vai errar ou não; e mete a mão na massa com fúria e paixão, extraindo da guitarra  (uma Gibson, salvo engano, alguém me disse) timbres fantásticos e fortíssimos (que me lembram um pouco as coisas mais viscerais do The Who), seja nas repetições hipnóticas ou nos solos desvairados, e ainda nas levadas rítmicas turbilhonantes. O tempo inteiro o alvo de Fabio é o transcendente, embora uma transcendência que não abre mão do corpo, mas leva o corpo junto.

E o que dizer da batera de Bosco, rindo lá no fundo como quem toca anima uma festa de aniversário e solando como um John Boham em tempo acelerado? Não é à toa que ele é pai de Jean "Boham" Albernaz, que, quando somar à sua ferocidade e precisão tudo o que pai sabe, vai ser o melhor baterista do mundo - aí sim, sem exagero retórico, um John Boham renascido, como eu disse no post anterior. Aliás, corrigindo, um Boham-Grhol. Mas, voltando à noite de ontem, Renato também estava em estado de graça, e o baixão de João Carlos pulsou firme e denso o tempo todo. Erraram pra caralho, mas fizeram um show único, com toda a garra que o improviso traz ao blues.

João "Boham" Bosco (ao centro), nos velhos tempos do
Alta Tensão (do clássico "Paranóia", hino extraoficial
de Bigfield).
Uma cena que merecia ser registrada: o momento em que Fabio chamou Jefferson, guitarrista do Wishky de Segunda, ao palco e exigiu que ele assumisse sua guitarra: tímido, e talvez ainda mais intimidado pela responsa, tocando de total improviso, ele não fez tudo o que faz no Rota toda sexta, mas mostrou que é sim o herdeiro legítimo da vitalidade Fabio Brum, embora com uma técnica própria, que eu não vou tentar descrever.

E tudo isso em Bigfield, esse campo grande dos infernos que não valoriza seus talentos. A terra, conforme um papo com o Jonatas Bobadilha (baixista da banda Neptuno, que eu ainda quero ver em ação) na saída do show, onde o bluesão dos guetos norte-americanos encarnou, provavelmente como em nenhuma outra do Brasil. É verdade, Jonatas: com todo o respeito ao grande Celso BB, os kings estão aqui!...

Mas sem competição! Vida longa ao blues, vida longa a Fabio "Holly" Brum, vida longa a Renato e seus blues bêbados! Porra, nem falei das letras do Renato... fica para a próxima. A vontade é de lançar um movimento: Volta, Blues Band!!!

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Dimitri Pellz, 7 de setembro: flying with fire


Queria ter escrito sobre a banda Dimitri Pellz há quase três anos, quando a vi pela segunda e, até ontem, última vez, no Fogo do Cerrado de 2010. O tempo passou, o impacto se diluiu no sangue e eu fiquei aguardando outra chance, desalentado com o boato de que a – em minha modesta mas convicta opinião – melhor banda de rock do Brasil havia acabado. Mas o boato era falso: Dimitri vive, e, mesmo ligeiramente fora de forma, fez ontem, aliás, hoje, outra apresentação memorável no já histórico BarFly.

Sempre que vejo a banda de Maíra Espíndola e Jean Albernaz (os demais não são meros acessórios, mas giram em torno deles) se apresentar, fico dividido entre a entrega ao som massacrante – um psychoprogpunk ao mesmo tempo experimental e visceral –, principalmente aos tambores exatos e furiosos de Jean, Boham redivivo, latinizado e africanizado (mas há também a fusion baixo-guitarra-tecladística: potente, psicodélica e meio espacial-progressiva), e a atenção às letras e “performances” não menos arrasadoras de Maíra.

Arrasadoras é pouco: as “performances” de Maíra, seu strip acintoso, seus discursos ácidos e enfezados, cantados ou não, são verdadeiras esquizoanálises, catarses apocalípticas que expõem em carne viva a falsidade, a mediocridade e o comodismo de todos nós. A ovelha negra da “família-música” do Mato Morto não é só o avesso dos Espíndola, mas um cuspe na cara maquiada e ostentosa da cidade dita Morena, ou melhor, das grandes e universais mentiras humanas que nela se espojam. Não é à toa que desperta a crassa estupidez de alguns, provavelmente zelosos de algo de que no fundo duvidam.

Jean "Bohan" Albernaz
Mas em cada grito de Maíra, em cada acorde pulsante-obsedante de Dimitri, vibra a esperança encarnada: mais que desnudar, incendiar, cuspir na cara da Morena, libertá-la, e a tudo que vive e se deixa prender nela. Por isso, em nenhum show se dança como nos shows de Dimitri: com tanto amor e fúria ao mesmo tempo. 

Enfim, Dimitri vive – e que seja eterno enquanto viva. Para além disso já é. 

Pra quem não conhece, um registro incendiário:


Essa madrugada de 6 para 7 de setembro, mas já em plena data “libertária” (que, aliás, Maíra fez questão de “celebrar”), ainda teve como fecho outra big band bigfieldense: a Gopstopper, com suas letras e melodias belíssimas mas sem enfeites, exigentes de uma atenção que também nesse caso, como em todo bom rock, conflita com o som vibrante: a bateria firme de Leco, o baixão solante de Marcel Ribeiro e a voz grave, falada-cantada, de Elizeu Nico. O desafio de unir potência e beleza; potência sem brutalidade, certa gravidade oitentista (mas também, sem dúvida, loshermanística): é que me passa o som dos Gobstoppers.

A banda que abriu a noite, e que eu vi pela primeira vez em formação completa, alcançou algo parecido em seus melhores momentos, por exemplo na versão metalizada de “Tutti Frutti”, de Little Richard. Faltou o Steppenwolf, que eu queria ouvir a Maíra gritando junto: BORN TO BE WI-I-I-IIILD...


Falando em gritar, enquanto eu começo esse texto provavelmente ocorre o Grito dos Excluídos no desfile de 7 de setembro. Não estou lá, mas estou com eles.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Campo Grande do Inferno


Leões, Brasões, ferem-te um corte à espada
Negro e feroz sangrento nos arde em sal
Sobreiro desta malfadada náufraga nau
Terrível terena, ossos queimados em cal

Ó, tumbas vis e profanas de meus ancestrais
De flechas e pólvora exilados do céu
Fantasmas, desgraçadas bestas, da negra Babel,
Degolem-me as vísceras e tripas no cais

Eis que adentro ao campo grande do inferno
Cão Azazel vocifera arde no eterno:
"Entrai, adentrai ao campo grande do inferno!"

Ó, árvores frondosas eivadas desta terra
Os punhos em furor os teus ramos arrebento
Crava-me tuas lascas em flecha no peito, fera.

Sebastião Ramos Osias

terça-feira, 17 de julho de 2012

Prometheus de Ridley Scott: eram-se os deuses e a metafísica continua

Já faz alguns dias, se não me engano umas duas semanas, que assisti Prometheus. Não posso dizer que seja um mau filme (mas também não digo que é bom), e nem que ele não me impressionou, mas, passado o impacto de primeira hora (ao longo do próprio filme já amortizado em asco e depois em tédio face os clichês), não me sobrou entusiasmo suficiente para escrever sobre ele, e menos ainda de fazer publicidade dele. Mas como é um filme que tem sua "importância" e, além disso, ao qual eu me referi no segundo post deste blogquando ele ainda era um mero projeto do diretor de Alien, eu estava praticamente obrigado a dizer duas palavras sobre ele; tarefa da qual me livro agora.

Em sua dimensão "séria" (pois há a a charlatanesca), Prometheus é uma grande e terrível - algo, mesmo, maligna - armadilha. O que começa e nos captura numa vertigem quase orgânica - a dos mundos desconhecidos em que mergulhamos nas primeiras cenas, arrastados por um trabalho fenomenológico extremamente bem feito com a técnica 3D - logo dá lugar a um outro mergulho: o de uma fantasia-metafísica da Criação - ou derivação - do homem enquanto mal, enquanto cisão genético-metafísica. E nisso se resume Prometheus: na afirmação e emulação sinistra da ideia de que os seres, deuses ou astronautas, que nos criaram, nos odeiam, por motivos um pouco óbvios e que aliás também os constituem enquanto "seres" cindidos, doentios, mortos-vivos.


Mas o pior é que, sinistro até a medula (ou melhor, o DNA), Prometheus não se furta ao uso oportunista de todos os clichês possíveis, do horror ultramórbido, cada vez mais centrado na paranóia viral, ao heroísmo sacrificial, muito embora esse último de forma compensatória para o heroísmo psicótico que se encarna nessa nova e piorada, muito piorada, tenente Ripley, que age de forma tão irresponsavelmente maníaca em busca dos "segredos da vida" que não lhe sobra sombra de verossimilhança.


Quando não é maníaco, levando aos extremos a imolação física e moral de seus heróis - e principalmente sua heroína, o que ainda me parece muito doentiamente edipiano -, o heroísmo de 
Ridley Scott é fetichista. Confesso que não me desagradou ver um Ravel, um oriental quase tão simpático quanto eu, no batalhão de trabalhadores-salvadores-suicidas de última hora, mas se Scott tivesse lido esse meu outro post, sobre o fetichismo operário em um outro filme de ETs (e muito melhor!), de John Carpenter, saberia que essa pequena deferência não o pouparia de minhas críticas... (Isso é uma piada, entendido?)

Se Prometheus fosse um grande filme, poderia ser um Cidadão Kane do século XXI, e seu protagonista seria o velho-fantasma que financia a expedição, em busca da imortalidade que usurparia de vez a herança dos filhos. E o fato de conter esse tema, de acenar um mergulho nesse complexo antropológico, sem dúvida que é um ponto a seu favor, mas Prometheus é, sobretudo, um exercício doentio - um sintoma - do mesmo instinto niilista que se instala na raiz desse complexo. Tanto que, assim como obscurece o delírio psicoantropológico, no fim das contas salvaguarda a instância metafísica; e
menos em tributo ao que a ideia ou a presença de Deus contém para além desse delírio do que para glória da enorme confusão, a lógica eterna, e mais do que nunca perniciosa, dos enigmas substitutivos: eram-se os deuses, o quê - que mal, afinal de contas ainda metafísico - eram os astronautas? 

O que mais, senão uma grande e sinistra com
pensação para a consciência acabada e irredutível - humana, é claro - do sinistro? Salvos do fim, mas com a morte na alma: a utopia terminal do capitalismo. Depois de eleitos, os odiados pelos deuses. Astronautas? Não importa: Origem, com O maiúsculo, maligno-metafísica. De certa forma, Prometheus pode ser visto como o Melancholia de Ridley Scott, mas nele o que se exprime, além da mórbida e niilista "radicalidade" de uma alma maníaca? 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

"Pequenos" fundamentalismos

A notícia recente do massacre de oito torcedores do Palmeiras que comemoravam a conquista da última Copa do Brasil não parece ter causado grande comoção. Talvez porque fatos semelhantes já se tornaram corriqueiros, mas talvez, também, porque os palmeirenses não representam, afinal de contas, uma parcela tão grande da população, e nossos critérios de empatia e solidariedade estejam ficando cada vez mais exigentes...

Seja como for, eu não posso deixar de registrar o quão assustador me parece isso tudo. O tipo de ódio e ressentimento - social, cultural, familiar e o escambau - que move ações desse tipo me parece um sintoma francamente terminal, e de o quão profundamente a neurose-necrose do capitalismo já se instalou entre nós.

Há alguns anos era comum se dizer que no Brasil não existia terrorismo; acho que ninguém mais pode dizer isso em sã consciência: o caso citado é um típico exemplo de terror fundamentalista, de ação extrema de um tipo de mentalidade segregacionista. E o fato de as atitudes fundamentalistas entre nós não terem, necessariamente, motivos religiosos (apesar do caso terrível de Realengo) não me parece nada consolador. Pelo contrário, parece-me um sintoma de que são, muitas vezes, os "bem formados" (ou pelo menos que assim se julgam) os fundamentalistas.

Ainda ontem, lendo sobre a saída de Rodolfo Abrantes dos Raimundos e depois do Rodox (o que na época não me interessou), eu achei um vídeo dessa segunda banda, com um comentário no qual um evangélico se queixava pelos antigos fãs condenarem Rodolfo "apenas por ter deixado uma banda" (é claro que não foi só isso), e dizendo que na igreja dele, comentarista, não havia pessoas tão intolerantes quanto aqueles descolados roqueiros.

E, de fato, outro dia, num show de rock (era uma, digamos, metal cover night), um rapaz de classe média me dizia que "só os roqueiros são inteligentes". Eu lhe disse algo sobre a filosofia do samba que o deixou meio incrédulo. Ainda bem que, apesar de tudo, os jovens de hoje são mais abertos, e ele até se permitiu um "Será?". E foi lá, bater cabeça.

E decerto que há coisas mais graves por aí. Não vou remeter às intolerâncias de pais conservadores com filhos "largados" (nem de filhos "inteligentes" com pais simples), nem às opiniões corriqueiras da Veja e da Época, porque, como diria Raulzito, "é tudo gente fina", mas acho que esse é um tópico de reflexão para cada um de nós; inclusive eu, que já bati muito a cabeça por aí.

No mais, é como dizia o poeta: "nada demais"... "E só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção".

sábado, 30 de junho de 2012

O estranho da perversão: notas
psicanalíticas (e para além da psicanálise)
sobre o filme La Pianiste

Se é correto o teorema psicanalítico de que as mulheres experimentam sua constituição física como a consequência de uma castração, então em sua neurose elas pressentem a verdade. A mulher que se sente como uma  ferida, quando sangra, sabe mais a seu próprio respeito do que aquela que se imagina  como uma flor porque isso convém
a seu marido.
 

(T.W.Adorno In: Minima Moralia)

O texto “O Inquietante” de Freud, publicado em 1919, também dá sustentação a uma teoria psicanalítica da imagem ou teoria do olhar (Rivera, 2005), tal como podemos também testemunhar nas artes de vanguardas (embora o próprio Freud não faça alusão a esses movimentos artísticos, inclusive porque ele não apreciava a chamada "arte moderna", aliás, confessando um não entendimento da mesma). As discussões de Freud encontradas no texto, bem como os elementos que ele aponta para investigar o sentimento do “estranho” dão embasamento para se entender objetos encontrados na arte, na literatura, e também no cinema (alguns estilos de filmes) que provocam o sentimento de inquietação, de estranheza e de angústia no receptor de tais objetos artísticos, fora de uma teoria tradicional da estética. Assim, entramos no âmbito da discussão de imagens e objetos (artes plásticas/cinema/literatura) que provocam hesitação, abalo e vacilação no sujeito que os contempla ou que os usufrui, tendo em vista “aquilo” que os olhos vêem mas que contém algo que desconcerta o olhar, lançando o sujeito para o desconhecido, embora rementendo o último ao sentimento de alguma coisa de natureza  “particular” e íntima.
Freud, no texto, justifica descartar as “categorias estéticas tradicionais” para propor em seu lugar o “inquietante”, que é a substituição do “belo” pelo “estranho” (ou até mesmo o “bizarro”), assim apontando para um tema marginal nos tratados de estética, quais sejam, situações e objetos encontrados na arte que provocam inquietação e angústia nos apreciadores das artes. Aprofundando sobre o tema, Freud faz uma pesquisa semântica da palavra Unheimliche e descobre, na língua alemã, a ambiguidade presente na mesma, ou seja, o inquietante é ao mesmo tempo o estranho e o familiar: “O Inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (Freud, 1919).
Daí, a questão levantada pelo pai da psicanálise sobre o que faz com que o familiar se torne estranho: em que medida o familiar causa estranheza? O que se encontra velado, oculto no estranho, que causa tais sentimentos desconcertantes aos sujeitos? Ora, o inquietante remete ao inconsciente, ao retorno do recalcado e, por conseguinte, à questão do medo infantil da castração, mobilizada pelas fantasias incestuosas da criança com relação aos pais (o reconhecimento e a recusa sobre aquilo que na psicanálise clássica se denomina de “complexo de castração”, aventada na teoria da sexualidade infantil).
O conto fantástico de Hoffman, “O Homem de Areia”, é então analisado por Freud, que a partir dele acaba descobrindo os elementos relacionados à vida psíquica que geram o sentimento de inquietação: o tema do medo infantil de ter os olhos roubados, visto na figura de Nathaniel, personagem central do conto. O “Homem de Areia”  traz à tona a temática psicanalítica do medo infantil da castração (por exemplo, o medo primitivo de ferir os olhos, ou o de ficar cego, que são substitutivos do temor inconsciente da castração, tendo em vista que a ameaça de perder o pênis pode se estender, inconscientemente, à idéia de perder outro membros do corpo, sendo os olhos os substitutos privilegiados pela sua conotação edipiana). Mas Freud também discorre a respeito de fatores infantis relacionados à gênese do sentimento inquietante, estabelecendo relações de tais motivos com a vida psíquica infantil e primitiva superada: o tema do “duplo” (defesa contra a aniquilação e a morte), do retorno do mesmo e da onipotência do pensamento, todos esses derivados do narcisismo infantil primitivo, que apontam para os elementos arcaicos de nosso psiquismo que, não obstante, teimam em permanecer na vida psíquica e que acabam por serem "suscitados" e mobilizados por determinados eventos da experiência individual. E, mais ainda, Freud aponta o medo da genitália feminina, que acaba por gerar no sujeito a angústia, assim provocando uma defesa psíquica no neurótico expressa na recusa do mesmo sobre o reconhecimento da castração, mobilizada pela visão da genitália feminina, que assim também tem o poder de suscitar um forte desejo de retorno ao ventre materno.
Na psicanálise, os objetos de fetiche do pervertido que lhe causam gozo e prazer - posto que o perverso se realiza sexualmente com tais objetos, em vez de uma relação genital "completa" - serviriam para enconbrir e, ao mesmo tempo, substituir o falos que falta à mãe, simbolizando a recusa da castração e da falta, na medida em que o objeto fetiche seria uma outra coisa no lugar do pênis faltante. Assim, a tansgressão do pervertido pode significar os seguintes fatores: a recusa da mutilação, e a possibilidade de "atualização" de desejos sádicos e masoquistas inconscientes, passíveis de existirem nas fantasias sexuais de qualquer indivíduo dito "saudável". Já não dizia o próprio Freud que "neurose, é, por assim dizer, o negativo da perversão"? Ou seja, que os gérmens da perversão fazem parte da vida sexual do neurótico ("normal"), tendo em vista a natureza errática e plástica das pulsões e suas possibilidades de satisfação sexual em objetos variados?
Pois bem, a respeito do "horror" provocado pela visão do sexo materno (que, por ser um buraco, ou uma "fenda", causar a impressão de ser uma "ferida" para as fantasias infantis), cuja imagem prenuncia o medo da castração e, assim, a verdade sobre a fragilidade e impotência humanas -  determinando a infelicidade universal encontrada no impedimento de um retorno ao ventre da mãe -, fazemos alusão a algumas passagens do filme "La Pianiste", naquilo que o filme suscita de estranheza, no tocante ao mundo sombrio da sexualidade perversa da personagem. O texto de Freud, que apresenta uma teoria psicanalítica da imagem e do olhar, nos fornece alguns elementos importantes para ensaiarmos tentativas de esclarecimento sobre a "estranheza" que a personagem central do filme nos evoca, além de atentarmos para o filme em si mesmo, como uma obra, para além de uma leitura reducionista psicologizante da personagem. As cenas fortes que mostram as "anomalias eróticas" de Érika, a pianista, bem como seus fetiches sexuais (sua automutilação, seu gosto por artigos pornográficos de caráter sado-masoquista, etc) e a sua tumultuosa relação com a mãe, causam no público aquele mesmo sentimento de inquietação e de desconforto, ainda mais quando confrontados com a rigidez da personagem no seu falso "ascetismo" maquiado pela profissão de professora de piano.
Mais instigante ainda é a relação que Érika tem com a música erudita, sendo ela mesma uma exímia pianista, além de uma rígida professora com relação aos seus alunos. À primeira vista, parece ser um paradoxo o contraste estabelecido entre o mundo ignóbil da sexualidade de Érika e a sua erudição e afeição pela música séria. No entanto, as barreiras entre tais mundos, aparentemente dissonantes (o erotismo "desviante" e a abstração encontrada na música como arte autêntica), revelam-se tênues, inclusive, um podendo jogar luz acerca do outro. Pensamos que essa questão da música ilumina a complexidade da personalidade de Érika, assim apontando para uma "verdade universal" embutida na particularidade da mesma, o que permite ao público se reconhecer  na personagem e ter alguma "simpatia" e compaixão (por que não?) com relação a ela, a despeito de toda aversão e estranhamento que ela possa provocar. Desta forma, a perversão de Érika, longe de ser uma "patologia" particular de uma mulher, cujas relações com a mãe são por demais doentias (aqui lembramos especialmente da cena na qual Érika, dormindo com a mãe, agarra essa e tenta uma relação forçada, suplicando seu amor, e depois lhe dizendo "Eu vi os pelos de seu sexo"), na realidade, pode dizer mais a respeito das deformações que todos nós trazemos, sobre nossas dores e feridas como seres carentes de "amor", e condenados à impotência social. A verdade subterrânea da condenação histórica das pulsões, pelo processo civilizatório, pode ser evidenciada na personagem.

As elocubrações colocadas acima sobre o filme do diretor Michael Haneke não se dão à toa. Aliás, ao considerarmos o filme "La Pianiste" uma obra-prima, tais motivos tornam-se mais do que suficientes para ousarmos levantar essas idéias. As referências sobre T. W. Adorno e aos compositores Schubert, Schumann e Schoenberg numa passagem do filme, encontradas na cena do primeiro diálogo estabelecido entre a pianista e o jovem Walter - rapaz por quem Érika engata uma relação "amorosa" e, assim, violenta, posto que ali surge a possibilidade de realização de suas fantasias que, não obstante, Walter não compreende e repudia tornando-se muito mais "cruel" que a própria Érika - são por demais elucidadoras. Nessa cena, Érika diz a Walter, depois de um recital privado, que tem uma paixão pelas músicas de Schubert e Schumann, mencionando uma obra composta por Schumann pouco antes dele enloquecer (fazendo referência ao seu "crepúsculo da espírito"), assim citando um texto de Adorno, "Fantasia em Dó Maior", no qual ela diz que o filósofo fala de Schumann, sobre a sua loucura derradeira. E Walter, ao tocar no recital, apresenta-se dizendo querer tocar  uma peça de Schoenberg, mas, em "homenagem" à Érika, escolhe Schubert: "Decidi esquecer Schoenberg e tocar Schubert".
Ora, nos textos de Adorno dirigidos à arte e à música, encontramos elogios à música nova de Schoenberg. Diz o filósofo que  as inovações formais da música dissonante (como a música escrita por Schoenberg nas suas "obras atonais") remetem aos "movimentos corporais do inconsciente", aos traumas da existência mutilada pelas forças sociais do processo histórico e, por isso, essa nova música teria um efeito insuportável e desconcertante aos ouvidos "domesticados" do público - esse, talvez já acostumado com um tipo de uma música mais conformista e adaptada ao mundo administrado, como no caso da música produzida pela indústria cultural. Acerca das inovações de obras atonais, diz Adorno que: "As obras atonais são documentos no sentido dos documentos oníricos dos psicanalistas" (...). A menção à filosofia da música de Adorno no filme dá indícios sobre as dissonâncias encontradas na subjetividade da personagem, trazendo à tona a sua vida erótica tumultuada, e a impossibilidade de satisfação da pulsão. Walter não entendeu e jamais entenderia as fantasias perversas de Érika, mas a promessa de realização de uma forma de amor - mesmo que "desviante" _ entre os dois não poderia jamais ser realizada. O que há de tão perturbador na relação entre a pianista e o jovem? Assim, a qualidade estética do filme também se encontra na possibilidade de desconcertar o espectador e poder apresentar, na linguagem do cinema, as tensões existentes entre a arte autêntica e a sociedade, as pulsões e a música, o "recalcado que retorna" e as convenções sociais da vida burguesa.

Referências bibliográficas utilizadas:
Adorno, T.W. Schoenberg e o Progresso In: Adorno, T.W Filosofia da Nova Música
Freud, S. O Inquietante In: Freud, S. Obras Completas
Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
Rivera, T. Arte e Psicanálise

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Melancholia como antiepopeia


Invocação aos letrandos

Ontem, dia 20 de junho, eu vivi um dos desafios mais importantes de minha vida profissional: a responsabilidade de falar publicamente sobre o filme Melancholia (com h, como faço questão de escrever e conforme explico nesse outro post), de Lars “von” Trier. Digo profissional porque a fala – a convite de meu amigo Sebastião, coordenador do projeto Cinema e Utopia, que promoveu a exibição do filme – foi também uma atividade acadêmica substitutiva de uma aula da disciplina “Estudo do Texto Literário: Drama e Épica”, que eu ministro na UEMS. E digo um dos desafios mais importantes porque considero esse filme um dos mais importantes já realizados no cinema mundial, e isso não só por suas qualidades estéticas como por sua seriedade: pela seriedade dos temas que trata e pela seriedade com que os trata (pois há outros filmes “sobre o fim do mundo” muito menos sérios).

Enquanto atividade acadêmica, a exibição do filme tinha – aliás, no momento em que escrevo ainda tem – o objetivo de estimular uma reflexão sobre a leitura de Georg Lukács das epopeias homéricas no início d’A teoria do romance. O que pressupõe, naturalmente, a possibilidade de traçar alguma relação entre o filme de Trier e essas epopeias. Ao longo da exibição do filme, no entanto, me convenci de que pautar minha fala nessa discussão produziria uma redução muito grande do filme em si mesmo, principalmente para os outros espectadores, que eram uma parte considerável da plateia e não conheciam o texto de Lukács. Além disso, a exibição inteira foi marcada por um problema que se tornou um assunto prévio obrigatório em minha fala: a cópia que tínhamos era dublada, ou pelo menos não conseguimos acionar o idioma original. Isso, num filme de arte, gera prejuízos enormes, pois as dublagens ficam sempre muito aquém do tratamento que o diretor e os atores concedem às entonações de vozes.

E, de fato, muito da densidade humana contida nos tons de voz se perdeu, principalmente nas partes mais dramáticas do filme; sobretudo, como acentuei em minha fala, no que diz respeito ao sofrimento da personagem Claire (sobre a qual falarei muito pouco neste post). Algumas risadas na plateia me convenceram definitivamente disso. Dessa forma, optei por fazer uma fala totalmente antididática: ao invés de trabalhar questões teóricas ou mesmo apresentar uma interpretação mais ou menos coesa e coerente do filme, esforcei-me por comunicar meu entusiasmo e, mais que isso, meu reiterado pasmo diante dele; minha sensação de sua força e sua grandeza, prejudicadas – sobretudo em sua dimensão humana – pela dublagem. Tentei fazer algo semelhante à estética do choque de Charles Baudelaire: algo como uma aula de choque.

No fim das contas, esse procedimento talvez seja o mais condizente com a complexidade e a profundidade de um filme – ou outra obra qualquer – como Melancholia. Muito mais do que respostas, Melancholia apresenta questões, provocações. Ainda assim, o esforço de pensar essas questões de uma forma mais sistemática também é necessário, e este post constitui uma tentativa de suprir, parcialmente, é claro, essa lacuna. Como uma das formas de fazer isso é justamente pensando a relação entre Melancholia e as epopeias homéricas, este post também servirá de estímulo para uma atividade reflexiva e discursiva – ou seja, uma pequena produção textual – de meus alunos em torno disso. 

Esclarecendo minha estratégia didática/paradidática, meus alunos serão orientados a produzir um comentário livre sobre essa questão (as relações inferíveis entre Melancholia e a leitura de Homero por Lukács), tomando ou não este post como ponto de partida mas, em todo caso, postando essa pequena produção textual como um comentário a ele. Quem quiser, pode assinar seu comentário com pseudônimo, informando-me sua identidade pessoalmente ou por e-mail. Trata-se de uma atividade (e uma experiência) simultaneamente didática e paradidática porque além dos objetivos crítico-didáticos, ela também visa estimular a intervenção crítica em espaços virtuais.

Melancholia: uma antiepopeia extrema?

Muitos conhecem as palavras com que Georg Lukács inicia A teoria do romance: “Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa do caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujo rumo a luz das estrelas ilumina”. No decurso de um longo parágrafo, o teórico húngaro tece um comovido elogio a Homero, como uma espécie de testemunha de um tempo de unidade plena entre o homem e o mundo. Um tempo não isento de conflitos, mas em que as próprias contradições humanas acham-se como que previamente glorificadas e legitimadas pela quase identidade entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Os deuses gregos não apenas contêm traços extremamente humanizados como habitam praticamente o mesmo espaço (o monte Olimpo e, no outro extremo, o Hades, são locais situados na geografia grega, e não em planos transcendentes) e participam dos mesmos conflitos que os homens.

Nessa humanização tão transparente, os deuses homéricos glorificam tanto as virtudes quanto as baixezas humanas, e por isso o homem está a salvo das inquietações espirituais: tudo no mundo contém uma face humana. E tudo isso a epopeia celebra; a toda essa altivez humana a epopeia tenta fazer justiça em suas próprias dimensões e no canto solene e entusiástico dos feitos (ainda que dolorosos) de seus heróis. Heróis grandiosos por seus feitos individuais mas também enquanto representantes maiores de uma raça de heróis; uma raça que se orgulha desses feitos, tenham eles raízes históricas ou não, mas sempre dignificados pelo revestimento mítico.

Não é difícil, para quem assiste Melancholia, perceber que esse filme é quase o contrário absoluto de tudo isso. Mas eu faço questão de sublinhar todas essas palavras porque todas elas são importantes, inclusive o quase. Pois pelo menos num item fundamental o filme de Trier é muito semelhante à epopeia homérico: em sua pretensão de uma grandiosidade, de uma espécie de majestade. O que em Homero se realiza pela solenidade dos versos decassílabos, no filme se traduz na solenidade das imagens iniciais, em câmera lenta, acompanhadas de uma música igualmente solene, e que serão retomadas no final, quando, após um “miolo” mais realista e de registro estilístico mais rebaixado, um tom mítico-simbólico voltará a predominar no filme.

Dessa forma, essas imagens também condensam o que se pode chamar de resíduo mítico em Melancholia. A cena que abre o filme, quando pássaros caem por trás do rosto atordoado de Justine, de forma muito semelhante a anjos caindo; a cena em que um cavalo cai dolorosamente, como que puxado para trás, por uma força gravitacional estranha, anormal; ou mesmo a cena em que Justine, vestida de noiva, tenta angustiadamente se livrar dos cipós que a prendem; e ainda a cena em que, também vestida de noiva, ela boia como um cadáver (embora com uma expressão beatífica) num rio; todas essas cenas, que parecem remeter aos sonhos algo proféticos ou premonitórios da própria Justine, têm uma expressividade simbólica muito próxima à do mito. Justine, aliás, tem algo de uma figura recorrente nas epopeias (e nas narrativas com elementos míticos em geral, incluindo a Bíblia) que é a figura do vidente, do profeta: daquele que vê o que os outros não conseguem ou não querem ver.

Aliás, mais do que resíduos míticos, essas imagens constituem uma reconfiguração de elementos míticos em um contexto radicalmente antimítico, um contexto de quase completo desencantamento e desamparo existencial e metafísico. O que é amplitude repleta de vida na Odisséia e mesmo na Ilíada (apesar de tantas mortes ocorrerem em ambas) em Melancholia é amplitude vazia, despida de essência e vida humanas; uma espécie de desertificação da existência, plasmada sobretudo nos jardins rigorosamente planejados da mansão de John. Mesmo quando o “colorido da vida” predomina, como na longa parte dedicada ao casamento de Justine, essa “vida” é tão mesquinha, tão explicitamente falsa e regida pelas aparências, e o ser humano vale tão pouco diante dessas aparências e demandas mesquinhas (as aparências mandam tanto que o mestre de cerimônias, ofendido pela falta de cerimônia da noiva, se recusa a olhar para ela), que a própria vida surge como algo miserável, por vezes quase rastejante.

Aqueles que na epopeia teriam a função de transmitir ensinamentos, de zelar pela verdade e pela justiça, em Melancholia revelam-se os mais mesquinhos: o pai de Justine, quase um ancião, ao invés de sabedoria transpira devassidão moral (ele chega a chamar a filha de “Beth”, como chama todas as suas amantes); o patrão, longe de conter algo da dignidade de um rei que zela por seus súditos, é um indivíduo arrogante ao extremo, que, oculto sob uma máscara de benevolência, impõe à empregada a obrigação de criar uma frase publicitária na noite de núpcias, e a um jovem empregado a obrigação de extrair dela essa frase, sob pena de ser demitido. Na segunda parte, centrada na vida familiar de John – um “mundo fechado”que é ao mesmo tempo um espelho das angústias modernas , a suposta soberania da razão mostra-se pronta a se tornar desespero tão logo se revele falha. Os velhos agem como crianças inconsequentes, e a única criança do filme parece um velho precoce (em algumas cenas, os cabelos do menino parecem grisalhos).

O que é unidade ideológica na epopeia torna-se aqui uma espécie de estrutura bipolar, evidente nas inversões de situação ou configuração moral e psicológica dos personagens nas duas partes. Se na Odisséia o impulso por aventuras conduz a alma pelo mundo, em Melancholia o confinamento ao espaço fechado do rito simbólico é imposto por uma força ou vontade obscura. Se em Homero cada ato dos personagens espelha sua alma, como se a alma fosse tão ou mais interior do que exterior), no filme de Trier a própria alma está em questão. E, no entanto, o próprio planeta destruidor é uma espécie de reflexo ou emanação dessa alma niilista, dessa alma que duvida de si mesma (mas também algo maior do que ela, ou do que esse desamparo a que ela se reduziu ou ameaça reduzir). Por isso intitulei meu outro post “Melancholia, morte e alma do mundo”.

Ao mesmo tempo, Melancholia é um filme onde certo heroísmo é um dos elementos mais importantes. Nada a ver, entretanto, com o heroísmo hollywoodiano, onde o bem e o mal se separam como água e óleo. Trata-se, pelo contrário, do heroísmo tortuoso, confuso e cindido da própria Justine, com sua ânsia de não se entregar ao mundo de falsidade; um heroísmo que, na segunda parte, inverte-se numa crueldade quase absoluta, mas que se recompõe, e de forma mais completa, no final, quando ela constrói a “cabana mágica” para “proteger” a si mesma, à irmã e ao sobrinho. Um heroísmo ligado a um sentido de inocência ou pureza que, como o Sebastião acentuou muito bem, liga a personagem aos animais e à própria criança. E não importa se esse heroísmo fracassa “na prática”, pois é da situação espiritual do homem contemporâneo que trata Melancholia. É ela que a própria melancolia, assim como o planeta “Melancholia”, condenação e alma do mundo, simbolizam.

Um mundo, como se vê, muito distante do mundo pleno, povoado de deuses e de sentido humano dos gregos, e onde o medo do nada, da aniquilação absoluta (figurado sobretudo em Claire e seu marido, John), se tornou imperioso. Um mundo onde o mapa estrelado dos caminhos transitáveis” de que fala Lukács foi substituído por uma rota catastrófica, condenatória; um mundo do qual os deuses (ou, no caso, Deus) foram enxotados pelo materialismo extremo – o culto do dinheiro, das aparências, da propriedade, da ciência –, mas que parecem “retornar”, de forma residual, sinistra e impessoal na forma de um corpo celeste; um “mero” corpo celeste, no entanto, dotado de uma espécie de onipotência cósmica. E um corpo celeste, além disso, com cuja “alma” de certa forma a alma da própria Justine se comunica; com a qual, a bem da verdade, ela chega perto de fazer amor. Em suma, há realmente algo de uma dimensão mítica nessa personagem, tão íntima da espécie de planeta-deus, “Melancholia”, que porá fim à vida na Terra.

Mas enquanto essa dimensão mítica se espraia plenamente por cada recanto do canto épico, em Melancholia ela (ou, talvez, a consciência dela) tornou-se privilégio de uma mulher transtornada. Como se apenas no transtorno, quase na loucura, em tudo que é contrário ao mundo regulado e coisificado, é que fosse capaz de emergir um sentimento capaz de ligar o ser humano a algo maior do que ele. Numa palavra, ao sentimento do Sagrado. 

E, no entanto, de alguma forma a nobreza do ser humano, mesmo esmagada, humilhada, reduzida a farrapos, pode ser entrevista o tempo todo em Melancholia: na ingênua altivez científica de John, que, somada a seu amor pelo filho, o torna um personagem quase nobre na segunda parte (e que o reveste de uma dimensão trágica quando essa altivez se transforma em insegurança e covardia); no amor, deformado e egoísta mas autêntico, do pai de Justine por ela; na nobreza com que o mordomo, depois ser submetido ao ridículo por aquele mesmo personagem, atende prestamente ao pedido de Justine para que arrume um quarto para ele; na nobreza do jovem “usado” por Justine e que, quando ela “cai em desgraça”, lhe oferece seus préstimos; na nobreza do próprio noivo, que, desprezado e humilhado em plenas núpcias, despede-se de Justine com um gesto carinhoso.

Nesse último caso, naturalmente, há uma “questão penelopiana” em jogo... E em tudo isso, a meu ver, o filme de Trier pode ser classificado como uma antiepopéia quase extrema, com uma atenção extra para esse “quase”. Pois a beleza e a grandeza de alma da epopeia ainda estão, de alguma forma, presentes em Melancholia e seus personagens. E não, é claro, uma epopeia no sentido estrito do gênero épico (como o define, por exemplo, Anazildo Vasconcelos da Silva), e sim no sentido do objetivo que Lukács atribui à epopeia e depois ao romance: o de produzir um espelho amplo para seu mundo de origem, um mapeamento, muito mais que de seus acontecimentos, de seus anseios, conflitos e esperanças.

Quem quiser discutir comigo essa questão, fique à vontade. Senão, que diga o quiser sobre o assunto. Dirijo-me a meus alunos, é claro, mas o convite é extensível a todos os leitores.


Nota póstuma:): Ao contrário de meu post anterior, onde – seguindo a opinião do escritor Reinaldo Moraes em seu livro Pornopopéia –, preferi manter a acentuação da palavra epopeia (cujo acento caiu na última reforma ortográfica), não me valho aqui dessa liberdade poética (e licença gramatical provisória: o novo acordo só será obrigatório a partir de 2013). Não só porque este é um post mais sério mas também porque Melancholia – como o próprio livro de Moraes – é também uma espécie de peia. Aliás, contrariando um pouco a leitura de Lukács, parece hoje evidente que toda epopeia é também uma espécie de peia. Que o digam Ulisses, Aquiles e outros heróis.