VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"Sócrates Eterno" - e (Pedro) Brasileiro

Legenda da foto (de J. B. Scalco): OS DEMOCRATAS – Sócrates, 
acompanhado por Biro-Biro (deitado), Casagrande (ajoelhado), 
Paulinho e Zenon (de bigode) posam para a capa de Placar 
em 5 de novembro de 1982
Que eu me lembre, nunca comprei uma revista Placar. Mas folheei muitas, quando menino, de propriedade do Alan, irmão mais velho do Léo e do Fábio – os três, meus melhores amigos na primeira parte de minha infância em Corumbá, onde cheguei com oito ou nove anos. Com Alan eu folheava as Placar e jogava futebol de botão, com o trio completo arriscava umas peladas no quintal de terra da casa deles, onde o Clarete – amigo do peito de meu pai, ainda dos tempos da Marinha – havia providenciado uns ótimos “golzinhos”. E foi numa tabelinha com o Alan, nas lajotas da velha rua Ladário, que eu fiz o único gol bonito da minha vida, antes de me conformar em, ao invés de tentar fazer, defender alguns e sobretudo tomar muitos gols... Bem, pelo menos nunca fui juiz!

Mas, enfim, hoje eu ganhei uma Placar. Eu chegava em casa com meus filhos e, do outro lado da rua, alguém me chamou: “Ô, amigo”. Era um homem forte e maduro, com bigodes fartos, sentado na calçada e com uma bolsa de viagem ao lado. “Opa”, eu cumprimentei, sem parar, prevendo um pedido de esmolas. Mas ao invés disso ele completou: “Você parece o Sócrates!”. Sempre me “confundem” com Jesus Cristo e Raul Seixas (durante algum tempo, que felizmente já passou, com Gabriel o, sic, “Pensador”), mas com Sócrates nunca havia ocorrido. “Sócrates, o jogador? Obrigado! E você, com esse bigodão, lembra o Toninho Cerezo.” Foi aí que ele se animou: “Eu posso te dar um presente?”. Eu já chegava no portão, onde encaminhei as crianças para dentro, e atravessei a rua.

Do outro lado, surpreso, eu o vi tirar a revista da bolsa: uma “Edição de Colecionador”, com essa chamada, ladeando o símbolo do Corinthians na camisa branca do Magrão: “Sócrates Eterno”. Embasbacado, eu perguntei se a revista não ia fazer falta, e ele respondeu, simplesmente: “Não, eu já li”. Contei e descrevi minha pequena homenagem a Sócrates neste blog, explicando minha condição de vascaíno, e aí ele se ergueu, dizendo que seu braço havia se arrepiado inteiro e que fazia questão de se levantar para me cumprimentar. E declinou o nome completo, do qual minha memória de queijo suíço (é uma imagem do Norman Mailer) só guardou o primeiro: Pedro. Estava ali, sentado, esperando um prato de comida que alguém naquela casa lhe havia prometido (e que de fato logo chegou). Era – aliás, é – natural de algum estado do Norte que, confesso, eu esqueci, e queria, digo, quer chegar – por motivos que não cheguei a perguntar – a São Simão, uma cidade próxima daqui de Caçu.

Eu, que já o havia praticamente obrigado a aceitar, a título de “uma força” (não de pagamento), os doze reais que trazia comigo, me ofereci para “conseguir” uma passagem até São Simão. Corri aqui em casa e liguei para o guichê da empresa de ônibus, mas ninguém atendeu. Consultei a Josy a propósito de oferecermos abrigo àquele desabrigado por esta noite – amanhã eu iria com ele à rodoviária – e ela concordou, mas não tive pressa, e quando voltei à rua ele já não estava lá. Dei uma volta na quadra e necas.

Taí um Pensador de verdade
Em algum momento, dei uma olhada no preço na capa da revista: 10 reais. Minha esmola – não há outra palavra – havia sido não de doze, mas de míseros dois reais. Mas é menos isso (que, afinal, despreza o significado de um presente), e mais o fato de que minha pretensa ajuda no deslocamento do Sr. Pedro seria (quem se engana?) uma providencial solução para um problema – providencial para mim, mas certamente falsa para meu breve amigo –, além de outras coisas que deixo de lado (coisas relativas à proverbial cultura da censura e da desconfiança que acompanha nossas ditas práticas solidárias), que torna essa crônica sobre generosidade e amizade só parcialmente digna da memória de Sócrates Brasileiro ou de uma palavra como Democracia – corintiana, brasileira, verdadeira...

Bem, pelo menos isso é verdade: pareço mesmo um pouco com o Doutor. Bom ou mau, nunca me soube tão brasileiro. Mas não fui eu quem mais honrou esse adjetivo – e esse nome – neste fim de tarde.

Bônus - Além dessas fotos, tomo a liberdade de compartilhar a melhor matéria, a meu ver, do belo presente do meu amigo Pedro: A Democracia se consolida (08/04/1983).

Um comentário:

  1. Devia ter feito isso antes, mas, enfim, antes tarde do que nunca: dedico meus dois posts sobre o grande Sócrates a todos os corintianos com quem eu tenho ou tive o prazer de conviver: que eu me lembre agora, a Josy, o Chico, o Faria, o William, a Lucilene, o Tião(?) e meu pai, que era corintiano, vascaíno e, sobretudo, gremista.

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