VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sobre o caráter revigorador, mas também sombrio, da obra de arte


A discussão sobre as relações da arte com a miséria da vida que aponta para a promessa de felicidade contida nas obras, fazendo da arte uma “aparência de vida” bem melhor e mais bela do que a cinzenta realidade, pode ser verificada no documentário Lixo Extraordinário (já discutido neste outro post). O filme mostra o percurso do famoso artista plástico Vik Muniz que, ao resolver fazer arte com materiais do aterro sanitário do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, com a participação ativa dos trabalhadores do local - os catadores de lixo -, empreende uma transformação na vida daquelas pessoas. No filme, podemos visualizar o tema polêmico sobre a "inutilidade" da arte (apesar da vinculação da arte com projetos sociais, tal como explicitamente propugnado pelo artista no documentário), e sobre sua natureza paradoxal relacionada ao seu parentesco sombrio com a morte, que retira o seu poder de "encantamento estético" da extração de vida (de histórias de vidas) de pessoas comuns, cujos brilhos tornaram-se "apagados" pelo cotidiano inglório e injusto de uma vida reduzida à sobrevivência e à exclusão social.

As personagens que participam do projeto de Vik são justamente aqueles trabalhadores, cujos ofícios são julgados pela civilização como um dos mais ignóbeis e inferiores, por lidarem com o lixo, com a sujeira, com os restos "inutilizáveis" da sociedade, assim compondo a massa de trabalhadores invisíveis e expurgados pela sociedade. Não podemos deixar de mencionar um dos relatos de uma catadora de lixo a respeito do preconceito que sofre, quando afirma que, ao se envolver nesse tipo de trabalho e diante do incômodo que ele provoca nas pessoas (o mau cheiro que ela exala pelo contato com o lixo), "antes melhor catar lixo do que se prostituir...".

Mas neste interjogo retirado do filme sobre a dinâmica "arte" e "lixo", "fealdade" e "beleza", "matéria" e "ideia" (imagem), "vida" e "morte", para além das implicações sociais e até políticas do documentário, o que chamamos a atenção é justamente para a ambiguidade insolúvel da obra de arte que aparece na trama, quando também ouvimos e assistimos os dramas de cada catador de lixo e o envolvimento intenso deles na criação das obras: a de a obra de arte ser uma promessa de vida mais justa, com poder regenerativo e de encantamento, mas que se efetiva às custas da exclusão e da opressão social; ou seja, somente a partir da escória e da miséria, a beleza suscitada e materializada pela forma artística se realiza como ideia possível dentro de um âmbito não mais sujeito à autoconservação, não mais ligado à sobrevivência dentro de uma "finalidade sem fim".

Eis aí, também, o caráter revigorador mas também "letal" da obra de arte. Os trabalhadores conseguem "fugir" um pouco do trabalho duro e até cruel (há também relatos sobre cadáveres encontrados no meio do lixo), quando participam da criação de seus retratos, embora aqueles mesmos retratos tenham justamente florescido a partir de suas misérias e do lixo, lembrando que esse último é a fonte principal de seus sustentos. Da não liberdade e da injustiça a que tais pessoas têm sido condenadas (por questões de natureza política e econômica), a arte vem a florescer como o campo da liberdade possível, mas não mais sujeita ou voltada à autoconservação daquelas pessoas.

Daí remetemos às relações ancestrais de parentesco da arte com as máscaras mortuárias (há algumas passagens belíssimas encontradas no livro de Maurício Chiarello Natureza Morta em que ele apresenta tais relações), que, ao promoverem o ocultamento ou o maquiamento da morte (a mutilação do cadáver e a impotência do homem), apresentam-se mais "vivas" e mais "belas" do que o próprio material do qual se originaram. E isso é visivelmente atestado nas obras produzidas pelos personagens do filme, nos retratos feitos pelo artista Vik Muniz com a participação dos catadores de lixo. Essas imagens, ao mesmo tempo que expõem toda a tristeza e crueza de rostos "esmaecidos" e entristecidos, também se impõem como algo muito melhor, assim escondendo (ou, talvez, superando) o horror desse mundo. 
Ana Paula Gomide


*  *  *

Acréscimo em 29/11:

Oi, Ana. Veja que honra: Affonso Romano de Sant'Anna, grande poeta e ensaísta, agradeceu o envio de seu texto e nos enviou, à guisa de comentário, este outro, de sua autoria e publicado originalmente no Estadão, sobre a obra de Vic Muniz. Uma bela e autêntica aula de arte contemporânea. Para garantir uma apresentação razoável, republico-o como anexo, e não como comentário. R.

QUESTÕES EM TORNO DE VIC MUNIZ(*)
Affonso Romano de Sant'Anna

A exposição de Vic Muniz no MAM/RJ mexe numa série de questões:

-o reencontro da arte com o público
-o reencontro com a figuração
-o reencontro com o social histórico
-desmistificação da falsa querela entre fotografia e pintura
-a superação das "in-significâncias" que caracterizam grande parte de obras "contemporâneas".

A essas se seguem outras questões igualmente instigantes. Algumas pessoas ao verem sua exposição ficam sem saber como classificá-lo.  Criador ou re-criador? Teria ele descoberto (como ocorre com alguns artistas hoje em dia) alguns "truques" e "macetes", que repete, ou supera esse vício da arte do nosso tempo?

Cada um desses tópicos mereceria desdobramento. Limito-me, no entanto, em sumarizar alguns comentários e em levantar algumas questões.

1- Esta é uma exposição que realiza o reencontro do público com a arte.  Isto é raríssimo hoje em dia. O que tem caracterizado certas mostras é  aquilo que Jean Clair- o crítico de arte de maior prestígio na França- chamava de " multidões sonâmbulas". Ir a museu virou uma variante do turismo. Pessoas vagando entre obras que não entendem sem conseguir compatibilizar as bulas oferecidas com o produto exposto. Ou então, propostas de interatividades entre a in-singificância e a idiotice.

VM consegue a empatia e a admiração do público e a atenção de críticos daquilo que Howard Becker chamava de " arte oficialista".

2- Essa exposição derruba outra falácia "contemporânea": de que a figura acabou / a representação morreu. Neste sentido, VM superou essa espécie de querela entre  os atuais "protestantes" (contra figura) e os atuais católicos (pela representação).

3- Coloca mais uma pá de cal na equivocada querela entre pintura e fotografia. Se há cerca de  100 anos uns achavam que a fotografia mataria a pintura, a obra de VM inscreve um capítulo nessa novela  que poderia  ter um titulo: quando a fotografia ressuscita a pintura, o quadro e o painel.  Aqui a fotografia está dialogando com várias artes vizinhas: a escultura, o desenho, a pintura, a gravura, etc. O fotógrafo não compete com outros gêneros, mas soma-os ao seu fazer.

4- Ao contrário de in-certas manifestações "contemporâneas", as obras de VM têm um sentido social, histórico e político. Trabalha com imagens de   favelados, com ícones de nossa cultura, com fatos jornalísticos, faz  uma critica clara ao momento histórico e à sociedade de consumo, além e claro de se envolver pessoalmente em programas sociais. Retomando a já clássica e incontornável relação entre lixo & luxo  diverge  da arte produzida nas últimas décadas que exercitava  um tipo de niilismo e alienação. Sua  exposição, já no principio mostra, criticamente, aquele mapa do mundo onde os continentes são representados por computadores e peças eletrônicas amontoadas e outros dejetos da cultura moderna.

5- VM dialoga com a arte "anterior", não para ridicularizá-la juvenilmente, mas para reinscrevê-la, metamorfoseá-la no   tempo & espaço. Desenvolve um trabalho de paráfrase, paródia e de estilização de  obras  de Caravaggio, Goya, Monet, Gauguin, Piranesi, Boticelli, Bosh, etc. ( Por vício acadêmico alguém pode querer chamá-lo de pós-moderno). É curioso notar, contrastivamente,  que se alguns artistas do princípio do século 20  queriam queimar museus e jogar a arte anterior  no lixo, no final do mesmo século, como se tivessem juntando as contradições, outros artistas, como VM, não pregam a ruptura, mas  vão  ao passado com olhos no presente & futuro para reprocessar, reciclar conteúdos e conceitos.

Neste sentido, diria que é um "comentarista" da arte  de ontem & hoje, pois está  relendo várias obras clássicas à sua maneira, "refazendo-as", "reinterpretando-as" com materiais pouco convencionais. Ao retomar os "antigos", ele está não apenas revisitando, mas  "reilustrando" a história.

E aqui a palavra "ilustração" tem sua pertinência. Há algo de ilustração no sentido jornalístico do termo. E talvez aí esteja, ao mesmo tempo, tanto a  força   quanto  os riscos de suas obras. Se alguns de seus trabalhos aparecessem como ilustração em jornais e revistas, funcionariam perfeitamente. E o caráter jornalístico e documental é tão evidente, que ele trabalha também sobre fotos & fatos da imprensa. Deve ser neste aspecto que algumas pessoas têm dificuldade  em  qualificá-lo, apesar de seu êxito de crítica, de público e de venda. Em contrapartida, pode-se também indagar se certas ilustrações em revistas e jornais, se certas vitrinas de lojas, se certos anúncios não transcendem também o provisório e não mereceriam a perenidade dos museus.

6- Do ponto de vista estrutural & estruturante da obra de arte, VM vai na contramão de outro vezo contemporâneo: a entropia, a fragmentação, o improviso, o rascunho, o recorte, a dispersão, o aleatório, o acaso. Ao contrário, está ordenando a desordem, a confusão, a ambiguidade e a indecisão. E enquanto outros artistas se perdem entropicamente nos fragmentos, ele está fazendo a "reunião", conforme uma noção heideggeriana de arte como "reunião relevante e/ou revelante". Enfim, onde outros dispersam ele aglutina, onde outros se confundem, ele se esclarece. VM está reunindo as partes em função do todo, o átomo em função da matéria, o pigmento em função da imagem e do assunto. Oferece uma visão  gestaltiana do caos,  ordenando-o, mostrando-o pelo seu avesso.

7- Daí outra característica essencial de seu trabalho. E a palavra "trabalho" aqui faz sentido. Nele há  técnica e criatividade. Onde outros praticam  aquilo que no livro O ENIGMA VAZIO, IMPASSES DA ARTE DA CRITICA, chamei de  "irresponsabilidade estética e a estética da irresponsabilidade", esse é um autor que  não apenas se insere no seu tempo & espaço históricos,  mas tem "métier", pesquisa e desenvolve um "projectum". Seu fazer tem uma "estrutura", onde a " invariante" é o fragmento e as "constantes" são os diversos materiais que usa para preencher o conjunto.

8- Poder-se-ia alegar que ele utiliza   técnicas mais velhas que a Sé de Braga. Com efeito, nas procissões religiosas em Ouro Preto ou São João Del Rei, para ficarmos apenas no Brasil, as ruas são decoradas com pétalas de flores, utilizando uma técnica pontilhista. Igualmente, os que fazem desenho com areia colorida dentro de garrafas, como no  Ceará, ou até mesmo aqueles artistas de calçada que, em Nova York e Paris desenham nos passeios supreendentes cópias de quadros que estão nos museus, tudo isto tem a ver com a obra de VM.

Igualmente  o ilusionismo, o "trompe l'oeil", as anamorfoses que no Barroco conheceram seu apogeu, podem ser lembradas em relação a algumas de suas obras. É até possível que  alguém queira  chamá-lo de neobarroco, como se tornou moda  dizer nos últimos 40 anos.Com efeito, olha-se a obra, e  de longe vê-se uma coisa, de perto vê-se outra , e as duas visões se informam, a informação se complementa até pelo avesso. Mas o seu  ilusionismo, reconheça-se, produz efeito, não é um jogo gratuito, mas resulta em nova  informação e sensibilização estética.  Não tem nada a ver com a falsa equivocada pregação duchampiana da "indiferença".

Em síntese, a obra de VM  sendo de certo modo sintoma de sua época,  por outro lado, opõe-se ao que tenho definido como " in-significância". Ou seja, grande parte das obras expostas em galerias, museus e festivais tipo Documenta Kassel, são "enigmas vazios". São   exercícios falaciosos que, se  chamam a atenção, devem isto  à estratégia de marketing da  espetacularização.

Dou um exemplo, apenas um, das correlações possíveis entre as obras de VM e outros "contemporâneos". Consideremos  as obras de Daniel Spoeri, lá nos anos 60. No afã de ter que inventar sempre algo de novo e/ou diferente, lançou  ele um tipo de arte ligada à comida- a  "eat art" (arte comida), que consistia em expor pratos com restos de comida deixados às vezes até a podridão. Uma típica "in-significância" como tantas outras. No caso de VM ele retoma  a idéia, não a coisa. O que ele expõe não é apenas  o chocolate representando uma figura nem o macarrão parodiando a Medusa de Caravaggio, mas a representação,  a fotografia da idéia. Ou seja, enquanto em outros (como na "land art") o espetáculo é a obra, no seu caso de VM a obra é  espetáculo. Vamos a um exemplo do que digo: uma coisa "in-significante" é encher um caminhão de lixo e espetaculosamente despejar  os dejetos dentro de uma galeria de arte, com já foi feito na França e outros países; outra, bem outra,    é trabalhar sobre o lixo, reprocessá-lo teórica e tecnicamente. Enfim, a matéria bruta não é necessariamente arte. Arte é transformação, melhor ainda, transfiguração.

VM dá a sensação de descontração, de liberdade, de estar centrado num trabalho consequente. Picasso falou aquela frase de efeito que é apenas parcialmente  verdadeira: "eu não procuro, eu acho". De VM se poderia dizer que ele encontra, porque procura com atenção, paciência e criatividade.

(*) Estado de São Paulo-19.04.09

4 comentários:

  1. Oi, Ana! Obrigado pelo belo post. De fato, sua leitura não é incompatível com a do Ademir, mas, sem se deter exatamente sobre a questão do valor do filme, aprofunda a discussão no sentido do papel social e antropológico da arte. Acho essa questão crucial, não só porque afronta os privilégios do esteticismo contemporâneo como porque devolve à arte todo o alcance de sua condição problemática e problematizante no mundo. Fiquei muito curioso quanto à discussão de Chiarello sobre as máscaras mortuárias... Me fez lembrar de uma ilustração que uma amiga, Carolina Di Paolo, fez para um velho texto meu, sobre Machado de Assis e Victor Hugo, a partir da máscara mortuária do velho bruxo: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-40142003000100017&script=sci_arttext
    Um abração e, de novo, obrigado!

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  2. Nossa, Ravel, que legal!! Que honra!! E eu queria ter explorado muito mais coisa neste texto...
    Abração (com muito orgulho!!)

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  3. Ana, adorei o seu texto. Participo atualmente de um grupo de pesquisa da Educação da Unicamp que discute o uso da imagem, chama-se OLHO. Neste semestre discutimos o livre de Gilles Deleuze sobre a obra de Fracis Bacon. Buscamos nos encontros pensar a criação de imagem, principalmente pelo vídeo, fugindo do figurativo. Bom, acho que a documentário e a obra do Vic, como bem colocou Sant'anna, consegue dar o drible de uma forma muito criativa. Gosto muito do filme e acho o trabalho dele muito potente no tocante à sua estética híbrida de passado e futuro, e das diversar linguagem artísticas que a compõe.
    Cristiano

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  4. Estimado amigo Cristiano, que interessante seu grupo! Gopsto muito do Deleuze também. Mas no livro que eu cito, "Natureza Morta", de Mauríciio Chiarello, no capítulo "A imagem como cadáver" você encontrará discussões muito boas para o seu grupo então.
    Abçs saudosos!

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