VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Melancholia, morte e alma do mundo

Finalmente assisti, na última sexta-feira, Melancolia de Lars "von" Trier; aliás, Melancholia, pois a solenidade latina do substantivo em inglês é certamente significativa, de modo que a exclusão do "h" do título em português me parece injustificada.

Confesso que fiquei pasmo com a beleza do filme, tanto pelas imagens quanto pela densidade humana. Mas Trier sempre me incomoda muito (aliás, acho que ele ficaria muito triste se soubesse de alguém a salvo disso), e ainda não sei se esse filme me incomoda um pouco menos ou um pouco mais que os outros; menos, pelo próprio fato de a beleza humana finalmente conseguir se impor, de forma - totalmente? - convincente e, ao contrário, por exemplo, do que ocorria em Dogville, no âmbito da própria diegese; mais, pelo fato de justamente essa beleza, ou melhor, essa conciliação, afinal de contas legitimar de uma forma, digamos, mais "consistente" o que Trier tem de pior, e  que é, como sempre, seu estranho, paradoxal e doloroso mas inequívoco elogio da morte.

Sei que é um filme de uma beleza estupefaciante, no qual finalmente Trier faz inteira (ou quase isso) justiça à emulação que vem empreendendo, pelo menos desde de Anticristo, da obra de Tarkovski (no caso de Melancholia, de O sacrifício, onde, entre outras semelhanças, também se coloca uma situação de "fim do mundo"), e isso, talvez, mesmo a despeito de o quanto o pessimismo escatológico de Trier inverta, ou seja, piore Tarkovski, a começar pelo quê de afetado e, claro, equívoco desse pessimismo (que, no entanto, é autêntico e profícuo, e por isso não vou pô-lo entre aspas).

"Talvez" porque, de fato, Melancholia ainda é um filme estranho e, diga-se logo, algo decadente, no sentido de certo confinamento (paralelo, aliás, ao dos personagens) aos limites tolhidos de uma visão burguesa e desesperada da vida, e, quando menos, pronta a resvalar, num gesto audofensivo, para o cinismo. Melancholia é uma visão literalmente fulminante da vida contemporânea - mas não de toda ela, embora, certamente, de muito de sua essência. Porque a encruzilhada niilista de que ele trata não confronta apenas uns tantos ou quantos de nós, "subjetivamente", mas a todos, na prática. A alegoria do fim do mundo, mesmo construída algo "misticamente", diz respeito a isso: ao trato com um mundo, quiçá, em estado terminal. Um mundo, quando menos, terrivelmente doente.

Essa doença é também, naturalmente, a de cada um dos que vemos ali, com exceção, talvez, dos seres inocentes, entre eles o menino. Aliás, o tratamento afetuoso e enobrecedor dispensado por Trier ao menino, filho de Claire e John, me faz acreditar que o cineasta não concorda exatamente com o que diz Justine no auge da forma depressiva-destrutiva que ela assume na segunda parte, a saber, que a Terra é má, e por isso merece ser destruída. No entanto, como Anticristo, Melancholia não está, no núcleo espiritual ou ideológico mesmo de sua concepção, de sua forma-sentimento, a salvo desses deslizamentos metafísicos, e seu final é a prova mais simples e cabal disso: ambíguo, paradoxal que seja, é sempre um elogio da morte. Uma emulação artística e algo gozosa da morte, uma espécie de invocação sua, como aliás é evidente que Justine invoca "Melancholia", o planeta, entre as imagens de beleza arrasadora (concordo com você, Fabio) que abrem o filme.

No âmbito dessa significação geral, "metafísica", Melancholia é um filme sobre a morte e a alma do mundo; pois Melancholia, o planeta, é, evidentemente, essa alma presente-ausente que finalmente se reencontra, ou com a qual finalmente se acerta as contas.

Mas Melancholia também é um grande filme pelo "recheio humano" que intermedia esses momentos extremos. Pela primeira vez, a meu ver, Trier consegue fazer de seus jogos de inversão dos maniquísmos aparentes algo que efetivamente dissolve todo e qualquer maniqueísmo (no fundo, portanto, não tão aparente assim). Pela primeira vez, para além de todo Mal (e todo Bem? não sei), a existência humana se vê inteiramente reduzida ao que tem de melhor e de pior: o amor e o medo. Ou, antes que o amor, o próprio sentimento da vida, ou melhor, nesse caso, o sentimento "cósmico" (mas que também se projeta sobre a vida) que é a espécie de convicção ou, mais que isso, vinculação transcendental de Justine. Talvez porque o defrontamento com a morte se dá, agora, de um lugar de autoconsciência extrema de quem o vive; e porque diante da fatalidade da entrega a essa consciência em estado limite (Claire) ou da busca de superá-la (Justine e o menino) talvez já não haja sentido em subordiná-la a uma ritualística anulatória, como se dá em Dogville e Anticristo.

Mais que Justine, é Claire e seu círculo de relações imediatas (no qual Justine é importante, mas em parte como elemento "invasivo") quem condensa a densidade humana de Melancholia. Pois se na primeira parte Claire se torna, enquanto agente repressivo ligado à figura materna, uma espécie de contraponto maniqueísta à ânsia de plenitude da irmã (praticamente induzindo-a, de forma sub-reptícia e talvez inconsciente, a fazer gorar o próprio casamento), na segunda é ela, Claire, quem se vê exposta em toda sua fragilidade humana, como ocorrerá com seu marido, John - em sua segurança eivada de fragilidade, talvez o personagem mais denso do filme, o que mais se configura como um retrato subjetivo da melancolia -, ao se valer da solução fatal que ela reservara a si própria para o caso de seus temores se confirmarem.

Não por acaso, de todas as imagens que compõem o prólogo - muitas de um teor apocalíptico bem ao gosto do Benjamin do "drama barroco" e do Angelus Novus -, talvez seja a sua, carregando o filho por um gramado onde seus pés se afundam, como num lamaçal (um pesadelo que se ligará a fatos posteriores), a mais angustiante. É Claire quem se vê, na segunda parte, opressa pela segurança cruel da irmã, num processo, porém, que cederá à conciliação a partir do momento em que Justine obtiver um trunfo significativo, de alguma forma compensador da esperança de felicidade perdida (e certamente ilusória) do casamento: a confiança do próprio filho de Claire, num momento em que Melancholia está próximo demais para que haja sentido em celebrar qualquer espírito de vingança (ou porque Justine é mesmo muito diferente de Grace).

Ao mesmo tempo, porém, do ponto de vista deTrier - e, por extensão, do nosso -, o destino desses três personagens, como de todos os outros, inesquecíveis, é em si mesmo a ritualística anulatória de que eles (Justine, sobretudo) de certa forma abrem mão, carregando toda a ambiguidade de um gesto de denúncia e de lamento que, na impossibilidade de ir além disso, se resolve, embora de forma talvez mais ambígua e paradoxal do que nunca, enquanto gozo, "beleza". E, sim, me permito as aspas porque, a bem da verdade, o final de Melancholia ainda tem algo de insuficiente ou precipitado, senão vulgar, mesmo.

A própria "cabana mágina", sob a qual se sela a beleza do gesto conciliatório na hora extrema - Justine, ao contrário do que poderia fazer, pois já se vingara de Claire como que tomando de volta para si o sobrinho, convida a irmã para adentrá-la e toma sua mão -, contém algo de um recurso vulgar, que é a espécie de sublimação do confinamento (social) em outro, "metafísico", tão típica dos contos-de-fadas ideológicos contemporâneos (Harry Potter, por exemplo). Não importa a ineficácia prática desse gesto (embora sua confiança não deixe de continuar ecoando, pois a ligação de Justine com o transcendente é por demais efetiva para que isso não ocorra): ele foi o máximo a que se pôde chegar enquanto afirmação de algo.

Daí, também, Trier não deixar de emular o mesmo mundo burguês reificado que denuncia, o mundo onde a própria natureza (inclusive a humana: a festa, por exemplo) foi desertificada e assimilada a linhas e padrões de racionalidade (as primeiras tomadas do jardim de John ilustram isso de forma estranhamente magistral). O humor por vezes duvidoso (embora o mais das vezes enganoso) do filme se presta, em alguns momentos, a essa emulação. Por exemplo, quando Justine se desvencilha habilmente das cobranças a que o mundo da vida burguesa e enfatuada - com suas relações escusas das quais, ao que tudo indica, ela participa mas tenta escapar - a submete durante a festa: críticas que sejam, essas passagens mostram o quanto esse mundo importa para Trier, o quanto é preciso se afirmar nele ou diante dele.

É verdade que Trier é um mestre dos paradoxos, e, pelo menos desde Os idiotas, zela por desconstruir mesmo os elementos provocadores de que se vale. Por exemplo, o velho e sáfico pai de Claire e Justine, a princípio um elemento disruptor na ordem burguesa, revela-se apenas outro burguês enfatuado, em seu contraste - efetivado em mais de um ponto - com o mordomo, este com sua submissão mas também sua efetiva nobreza a toda prova. É por via desse último personagem, aliás (junto com as relações de trabalho da própria Justine), que Melancholia deixa entrever o peso da condição social enquanto dado economicamente - e não apenas subjetiva ou "culturalmente" - significativo. O mesmo mordomo de quem sua patroa, Claire, confessa não saber sequer se tem família, quando ele, ao contrário do colega buñueliano ao qual parece remeter (o mordomo de O anjo exterminador), decide (e consegue) não permanecer naquele lugar de fim melancólico.

Mas a todos nós - e a Claire, Justine, John etc. - é vedado qualquer outro aporte significacional além dos polos dos quais o sentimento da melancolia é talvez uma espécie de instável centro ou meio-termo. O que também significa que Trier recusa se banhar nas águas de um romantismo populista (Buñuel também não chega a fazer isso, pois seu personagem não se liberta de seu emburguesamento), mas não o impede de cultivar um outro, transcendental. No outro extremo, a miséria: a mesma inominável miséria - humana, social, individual, coletiva, etc. - tematizada em Dogville e Anticristo.

Como acontece nas grandes obras de arte, o mesmo gesto que desenha os limites ideológicos é que desenha o alcance, a amplitude artística e significacional. O que não impede de criticá-lo: se a arte não serve para ampliar os horizontes para além de si mesma ou dos que institui, para que servirá? Claro, a beleza; mas o que é a beleza sem horizontes que se renovem, a beleza que não é mais do que mera visão, senão a própria melancolia?

As imagens deslumbrantes que abrem Melancholia, com seu rigor opressivo que tanto alimenta quanto se tensiona por essa beleza, constituem um monumento sombrio mas importante a este nosso mundo em ruínas. Desde Cidade dos sonhos (sobre o qual meu amigo Sebastião publicou aqui este post) um filme não me toca tanto. Por sua fortaleza humanística inexpugnável, mesmo diante da miséria humana em que nos mergulha no final, prefiro o filme de Lynch, mas reconheço que o de Trier,  inclusive por seu conteúdo provocador e certamente problemático, diz mais, e de forma mais intensa, sobre o que somos hoje.

Dedico este post à Josy, que me provou que
mesmo os dias de luto podem ser dias bonitos.

Um comentário:

  1. Lucilene Soares da Costa comentou meu post por e-mail:

    Oi ravel,

    Gostei do seu post, embora tenda a considerá-lo um tanto 'racionalizante'.
    Explico: comigo tem acontecido uma coisa diferente no momento. Tenho ido ao cinema e prestado muito atenção especificamente na linguagem do cinema: nos atores, no movimento da câmera, na habilidade da direção, como tudo isso se soma ao enredo...
    Estou gostando mais de ver cinema como cinema, do cinema que conta habilmente uma história, ainda que simples e banal, ou pesada e difícil, do que daquele cinema que parece um tratado de sociologia ou filosofia, soterrando a linguagem cinematográfica com referencias excessivamente literárias ou filosóficas... (vide Eric Romher, por exemplo, um chato)

    Por entender exatamente o que é a linguagem cinematográfica é que o cinema norte-americano é bom. Já o cinema francês , que a cada filme pretende fazer um tratado sobre a existência, está tão ruim.

    Adorei Melancholia, sobretudo a segunda parte onde a gente mergulha completamente na imagem... Acho que o grande mérito do Von Trier é conseguir transpor todas estas questões (ontológicas, sociológicas, psicológicas) de maneira quase subliminar... Quase como quem não quer parecer tão profundo...

    Abraço, L.

    Ela também me enviou este link para um texto, muito interessante, de Luís Felipe Pondé sobre o filme:

    http://lenoirdesir.blogspot.com/2011/08/os-infortunios-da-melancolia-ponde.html

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