VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Sobre a atualidade do tema "tabus acerca do magistério", ou o 'bullying' em questão


Para as minhas aulas nos cursos de licenciatura, tenho certo apreço pelo texto de Adorno chamado "Tabus acerca do magistério", que, insistentemente, venho utilizando como ponto de partida (juntamente com os textos "Educação após Auschwitz" e "Educação contra a barbárie") para reflexões em sala de aula. Nesse texto, Adorno aponta questões cruciais encontradas nos fatores objetivos e, principalmente, subjetivos envolvidos na profissão do magistério, nas relações entre professores e alunos e na estrutura escolar de ensino, perpassando por temas tabus relacionados à profissão docente - ainda bastante vigentes hoje, tendo em vista os preconceitos referentes ao magistério -, e à violência inerente às relações institucionais escolares, sendo essa o reflexo de uma sociedade extremamente desigual com tendências à barbárie. No último semestre, tendo em vista trabalhar (e criticar) o tema "bullying", bastante explorado pelo mass media, resolvi passar o filme "If...", de Lindsay Anderson, premiado em 1969, juntamente com o texto de Adorno.

O filme, que trata da rebeldia de estudantes numa instituição de ensino inglesa tradicional, é considerado obra cinematográfica de referência para o tema "revolução cultural" e rebelião juvenil na década de 60. Não obstante ser uma obra inesquecível do cinema britânico (destaco algumas cenas "surrealistas" permeada de simbolismos e de tiradas poéticas), e apresentar um sistema rígido de ensino (contrastante com as reformas pedagógicas atuais do século XXI, úteis às políticas neoliberais, tais como o lema "aprender a aprender", entre outros), para meus intuitos, o filme também ilustra as hierarquias oficial e não-oficial existentes nas escolas e que seguem ainda existindo hoje no âmbito escolar, discutidas por Adorno no texto, e que acabam por constituir as relações de poder, contribuindo para a aversão de crianças e jovens contra a educação escolar e o corpo docente que a constitui: aquela hierarquia que diz respeito a uma espécie de aluno que se destaca por seu bom comportamento e bom desempenho de notas que, prestigiado como "aluno exemplar", enquadra-se bem nos moldes de uma sociedade extremamente individualista e competitiva; e aquela - a hierarquia não-oficial - que aponta para aqueles tipos de sujeitos que se destacam pela força física. Esses últimos, no entendimento de Adorno apresentados como os "ressentidos" - pois excluídos de uma formação cultural e intelectual e que desenvolvem certa aversão aos homens de estudo e ao "espírito" -, são os possíveis tipos sociais afinados com as personalidades dos algozes e carrascos, necessários às políticas totalitárias. Inclusive, nas palavras de Adorno, o nazismo explorou essa dupla hierarquia muito presente, inclusive, fora das escolas, assim incitando o repúdio e o desprezo das massas pelo trabalho intelectual, ao mesmo tempo, propiciando um clima social para a constituição de sujeitos bem adaptados e eficientes, sempre prontos para cumprir as ordens - o caráter manipulador descrito por Adorno na pesquisa "A Personalidade Autoritária", obra também citada nos ensaios de Adorno sobre educação.

Como Adorno mesmo afirmou: "A pesquisa pedagógica deveria dedicar especial atenção à hierarquia latente na escola". E dessa afirmação, destaco a sua pertinência e relevância para elucidar o problema do bullying, ou seja, a pesquisa psicológica e sociológica atuais deveriam se voltar para aquilo que Adorno há muito tempo já havia indicado nas suas "especulações pedagógicas": a de que a chave para a desbarbarização de pessoas reside na transformação decisiva da sociedade e em sua relação com a escola. O nosso processo educacional e civilizatório, que é delegado aos professores e mestres, orienta-se para o nivelamento no sentido de que as idiossincrasias e as "naturezas disformes" devam ser eliminadas nos alunos. Não obstante, tal tipo de educação pela "dureza" e pautada exclusivamente na adaptação do sujeito torna legítima as perseguições contra os colegas que apresentam tais "traços disformes" (aqueles destoantes do modelo de pessoa bem adaptada), ou algum tipo de fragilidade. A escola é também local de violência e punição quando deveria ser um ambiente que pudesse formar pessoas resistentes a qualquer tipo ou traço de violência. Somado a isso tudo, cada vez mais as pessoas (pseudo) formadas no seio das sociedades tecnológicas e da indústria cultural têm se tornado avessas ao conhecimento teórico e a determinados assuntos do "espírito".

Para o assunto "bullying" e "violência na escola" - diferentemente das abordagens de especialistas sobre o tema que prestam serviço à publicidade sensacionalista - deve ser questionado: o que há por trás do excesso de informações e de exploração sobre o "fenômeno bullying" encontrado no mass media? Por que hoje virou moda falar sobre o assunto? Estamos presenciando maior violência e abusos por parte de jovens e crianças hoje, do que antigamente? O que o termo técnico "bullying" visa ocultar? Ora, humilhações e demais brincadeiras de mau gosto, ou extremamente violentas, sempre ocorreram em instituições educacionais entre crianças, e/ou professores e alunos, presenciadas nos ritos de iniciação entre jovens em formação e nos abusos cometidos em sala de aula. Mas tal tipo de relação regredida não deveria jamais ser "naturalizada", ou reduzida aos problemas de personalidade dos sujeitos envolvidos, como é muito comum hoje escutarmos nas análises de especialistas voltados ao tema (por exemplo, existem estudos que apontam tanto a personalidade do aluno que comete violência e abusos contra colegas, quanto as características de quem se torna vítima de bullying. Em que pese a objetividade desses estudos, a questão é a de que aspectos psicológicos envolvidos na violência escolar não são suficientes para tratar do problema). O termo bullying utilizado e disseminado pelos experts torna-se mais um "produto cultural" a ser consumido pelos agentes educacionais, que acaba impedindo a conscientização e a reflexão mais crítica por parte dos mesmos sobre o legado de representações e práticas violentas que a escola carrega consigo, tendo em vista a nossa cultura prenhe de manifestações bárbaras.

Sobre a necessidade da força física para a dominação social, ainda muito presente nas sociedades liberais e democráticas, Adorno apresenta no texto "Tabus..." a existência da tradição de punições e de castigos físicos que fazem parte da história das instituições educacionais, o que contribuiu para a imagem do professor como "carrasco" e como "tirano" (o arcaísmo presente na profissão de ensinar). Mas o que é importante destacar é que os resquícios de punições ainda imperam na memória escolar, ao lado do exercício da força bruta e das humilhações psicológicas - essas, agora, mais presentes no quadro de relações estabelecidas nas escolas entre mestres e alunos -, indicando que nossa cultura é pautada na violência, e que nossas leis e relações sociais vigoram pela ameaça. Na literatura, é importante citar o livro O Jovem Törless (aqui comentado pelo mentor deste blog, meu amigo Ravel), bem como a obra Professor Unrat, de Heinrich Mann, comentada por Adorno no texto que, apesar de obras distintas e as especificidades de cada uma, retratam o tema do "clima pedagógico" perpetuador de relações autoritárias e regressivas entre os sujeitos: a manifestação do preconceito delirante, a opressão, a tortura e o genocídio.

Caberia, então, pensarmos o que ocorre nas nossas escolas hoje que, dolorosamente, crianças, jovens e professores têm experimentado. Alguns fatores podem ser levantados: as relações afetivas permeadas de ambivalência entre professores e crianças são sufocadas, bem como a dissolução de "autoridades esclarecidas", no sentido adorniano; os tabus contra o magistério (representações inconscientes) ainda vigoram e não são trabalhados ou ditos explicitamente nas relações entre os escolares; e mais outros elementos graves, tais como o preconceito de classe, etnia, entre outros, sabemos que se encontram bem presentes nas escolas, principalmente em se tratando de jovens e crianças pobres (aqui não citamos o repúdio que as autoridades brasileiras têm pela educação infantil e fundamental que, é claro, se reflete no interior das escolas, contribuindo para tais relações doentias). Nesse ambiente no qual o medo e a angústia não são trabalhados - lembrando que tais sentimentos estão à altura daquilo que a nossa realidade social nos exige -, seus efeitos deletérios só podem de fato se manifestar, nas piores formas possíveis: nos massacres e nas diversas formas de violência.

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